sexta-feira, 22 de junho de 2018

A alma humana como teatro do sonho...

[...] Joseph Addison observou que, quando sonha, a alma humana, desligada do corpo, é a um tempo o teatro, os atores e a platéia. Podemos acrescentar que é também a autora da fábula que está vendo. Existem textos semelhantes de Petrônio e de Dom Luis de Góngora.

Uma leitura literal da metáfora de Addison poderia conduzir-nos à tese perigosamente atraente de que os sonhos constituem o mais antigo e o não menos complexo dos gêneros literários. Essa curiosa tese, que não nos custa nada aprovar para a boa execução deste prólogo e para a leitura do texto, poderia justificar a composição de uma história geral dos sonhos e de seu influxo sobre as letras. A miscelânea apresentada neste volume, compilado para distrair o leitor curioso, ofereceria algum material. Essa história hipotética exploraria a evolução e a ramificação de um gênero tão antigo, desde os sonhos proféticos do Oriente até os sonhos alegóricos e satíricos da Idade Média e as puras diversões de Carroll e de Franz Kafka. E separaria, já de início, os sonhos inventados pelo sono e os sonhos inventados pela vigília.

Esse livro de sonhos que os leitores tornarão a sonhar abarca os sonhos da noite - os que eu assino, por exemplo -, os sonhos do dia, que são um exercício voluntário da nossa mente, e outros de raízes perdidas: digamos, o sonho anglo-saxão da Cruz.

O sexto livro da "Eneida" segue uma tradição da "Odisseia" e declara que são duas as portas divinas através das quais nos chegam os sonhos: a de marfim, que é a dos sonhos enganadores, e a de chifre, que é a dos sonhos proféticos. Face aos materiais escolhidos, dir-se-ia que o poeta sentiu de uma forma obscura que os sonhos que se antecipam ao futuro são menos preciosos do que os enganadores, os quais são uma invenção espontânea do homem que dorme.

Jorge Luis Borges in O Livro dos Sonhos, pág.5/6

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