quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Sob a proteção de Nossa Senhora de Aparecida

Ele acordou bem cedo, apesar de ser feriado, dia de Nossa Senhora de Aparecida. Chegara  ao final da noite com a família, mulher e três filhos, depois de enfrentar longo engarrafamento. Devoto da Padroeira, não haveria lugar melhor para comemorar a data que aquele sítio às margens do Paraíba do Sul.

Andou no escuro, tateou para achar o camisolão preto com apliques dourados. Vestiu-o e caminhou descalço pela casa, evitando barulhos, não podia ter companhia. Na sala, prostrou-se aos pés de majestosa imagem recoberta por manto preto e dourado, iluminada pela vela bruxuleante de sete dias. Fez suas preces, agradecimentos e pedidos. Levantou-se, fez uma reverência e pediu licença à santa. Com cuidado, retirou a estátua do nicho azul e dourado. Sentiu o peso do bronze e apoiou a imagem no ombro. Caminhou com dificuldade, lembrando-se de alguns romeiros da noite anterior, indo pela rodovia com pesadas cruzes. Cada um com a sua, conforme o pecado ou o pedido, pensou.

Descansou a estátua na mesa da varanda, que rangeu sob os quarenta quilos de bronze. Inspirou o ar frio, observando os primeiros raios de sol furando a noite, ultrapassando as montanhas e indo morrer nas águas sagradas. Aguardou o sol clarear minimamente a trilha à base de pedra na beira do rio.

Virou-se para a imagem, agora quase da sua altura. Olhos nos olhos, agradeceu-lhe pelo ano transcorrido, as alegrias, a ajuda lhe concedida, a proteção, coisas de mãe. Levantou a pesada estátua, escorou-a nos ombros e seguiu em peregrinação até o altar de pedra. Durante a caminhada, um pequeno barco a remo atraiu sua atenção, distraindo-lhe de suas preces.

Colocou a estátua sobre a pedra. Retirou, com todo o respeito, a coroa dourada e o manto da santa. Chegara a hora de banhá-la no rio, cerimônia mística para atrair as graças da Padroeira, como os padres faziam escondido com a imagem original no dia doze de outubro, segredo conhecido por poucos.

Antes que pudesse prosseguir com a cerimônia, o barco tocou na margem e um homem desceu. O remador fora atraído pelos reflexos do camisolão e da coroa. Puxou a embarcação para a terra, colocando-a próximo do barco azul do sítio. Caminhou em direção à estátua desejando bom dia. O devoto, contrariado com a interrupção, não respondeu. O curioso olhou a imagem.

- Ė Nossa Senhora e Aparecida?
- Sim.
- Desculpe minha franqueza, acho uma bobagem adorar estátuas. Certo estava aquele pastor que chutou uma imagem da Nossa Senhora na televisão.
- Aqui ele quebraria o pé, bronze puro.
- Acho religião uma invenção para enganar o povo e deixá-lo satisfeito na pobreza, enquanto poucos desfrutam da riqueza, como você. Invenção do homem que tem medo de morrer. Procura a vida eterna inventando deuses e paraísos. Acha que há vida depois da morte. Pra mim, morreu, morreu, acabou.
- Não acho.
- Noto. O que você vai fazer com a estátua?
- Uma cerimônia religiosa particular.
- Posso assistir? Não acredito nessas bobagens, mas gosto de ver rituais.
- Eu falei que é particular. Gostaria que você saísse do meu sítio.
- Tá bom, não precisa ser grosso, assisto da água. Vou filmar tudo.

O homem foi em direção ao seu barco. O devoto de Nossa Senhora desesperou-se. Como fazer a cerimônia com ele filmando? Ela só tinha efeito se sigilosa! E realizada hoje, dia da Padroeira. Do contrário, um ano inteiro sem proteção! Sem proteção!!!. Correu em direção aos barcos, pegou um remo do barco azul e acertou o visitante na cabeça, que caiu na sua embarcação. Ele bateu mais algumas vezes no outro, até passar o surto. Então viu o sangue, muito sangue, seu corpo tremeu todo, perdeu o equilíbrio e caiu. Ficou prostrado olhando a santa de longe. Fez umas preces e pediu conselhos para a Padroeira. Será que já tinha acabado a proteção conseguida com a cerimônia do ano passado? Não acreditando nisso, insistiu nas preces e no pedido de orientação, mãe me ajude!!! O sol conseguiu ultrapassar as montanhas e mostrar sua força, dourando as águas do Paraíba do Sul. Sua mente se iluminou: o milagre da santa, encontrada por pescadores naquele rio, que trouxera o homem e que também o levaria. Levantou-se, foi ao altar de pedra e pegou o manto. Voltou ao barco do invasor. Com cuidado, constatou que ele, mais que imóvel, morrera. "Morreu, morreu, acabou", recordou. Ajeitou-o no meio do barco, cobriu-o com o manto sagrado, tirou seu remo sujo de sangue e empurrou o barco para dentro do rio. Ficou alguns minutos vendo o barco ser levado lentamente pela correnteza. Calculou que em algumas horas ele passaria por Aparecida, com sorte poderia ser recolhido como a santa. Milagre!

Lavou o remo, banhou a santa, lavou-se nas águas do rio, purificados! Logo estaria mais um ano seguro, sob a proteção da Padroeira, da santa mãezinha dos brasileiros, da poderosa Nossa Senhora de Aparecida. Colocou a santa no altar de pedra e ia continuar com a cerimônia religiosa secreta quando...

- Pai, por que você bateu no moço?

José FRID

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