segunda-feira, 4 de novembro de 2019

O CÃO E EU NUM CASO DE AMOR E SEXO...

Estou fumando recostado em um carro. Tive trabalho para achar um veículo limpo que merecesse minhas nádegas  e costas. A calçada é larga, uns dois metros e meio até a grade do prédio,  há espaço para os pedestres e minhas baforadas. Acabei de chegar na cidade, preciso fazer amizades com vizinhas.

É a hora canina, quando os cachorros dos prédios levam seus donos para passear. Os bichos não cansam da rotina: cheirar xixi dos outros cães,  fazer xixi para os próximos cheirarem, latir para animais e humanos, defecar para o dono limpar, arranhar o chão, coçar pulgas reais ou imaginárias, avançar em desafetos caninos e humanos, interagir com outros cachorros, enquanto seus donos se arrastam pacientemente atrás deles ou interagem com humanos. Alguns desses escravos caninos são belos exemplares femininos, com quem gostaria de interagir, mas odeio cães, animais subservientes que se vendem por qualquer resto de comida ou bolinha jogada ao longe, que gostam de cheirar, babar e lamber os humanos. Para flertar com elas, teria que fazer festinha nos bichos. Argh!!!

Ela vem se aproximando toda cheirosa, cabelos ainda úmidos, roupas caseiras confortáveis, que moldam um belo corpo. Tem toda a minha atenção, mas a dela está inteiramente voltada para o Toby,  um vira lata resultado da mistura de umas dez raças, pelo menos, com resultado pavoroso, diga-se. Bicho feio, que a dona beija, abraça, afaga, chama de meu amor, filhinho, querido, tudo que eu queria para mim. Minha  chance seria dizer "que cachorrinho bonito" e tentar afagá-lo, mas a peste não ajuda, olha-me de lado, rosna. Ele sabe que não gosto dele,  ele também não gosta de mim. Ela sabe que eu gosto dela?

Ela aproxima-se. Trago forte e, ao expelir a fumaça na sua direção, capricho na formação de anéis concêntricos,  que evoluem pela calçada como se fossem argolas de prata para prendê-la pelos pulsos e, quem sabe, pelo coração.

Ela tosse  ao passar pelas argolas e me dá um olhar de reprimenda. Linda,  me bate que eu gosto! A fera percebe a sua contrariedade e rosna para mim, tentando abocanhar-me. Ela segura-o com decisão,  pede desculpas com a voz mais doce do planeta e prossegue com a caminhada. É ela! Contato visual feito, mas o que fazer quando ela voltar? Não posso perder a oportunidade.

Os dois se perdem na curva, matuto estratégias, não posso mais apelar para os sinais de fumaça. O melhor seria deixar o feioso cão me morder e com isso entabular conversa, perguntar pelas vacinas,  trocar telefones. Solução doída, dentes grandes, mandíbulas fortes, quem sabe ter que tomar vacina contra a raiva, perder sangue, um pedaço da perna. Será que ela vale esse sacrifício?

Penso que penso, a única solução é mesmo eu me sacrificar na pira do amor, no caso a bocarra do Toby. Eles assomam na curva, fico nervoso, mas a decisão está tomada. Abaixo as mangas da camisa, puxo as meias para cima, acerto as pernas do jeans sobre os tênis, tudo para minimizar o prejuízo. O plano é dirigir-me direto a ela para conversar, provocando o ataque do cão. 

Ela aproxima-se, já antecipo as dores das mordidas,  penso na injeção na barriga contra a raiva, quase desisto, mas ela é linda, merece o sacrifício. Ela mais perto, desencosto do carro e dou a última arrumação nas roupas. Os dois mais próximos, jogo o cigarro no chão e vou em direção a eles. Toby percebe a minha intenção e arma o bote, tenciono-me todo à espera das mordidas....

O bicho geme alto, gane, contorcendo-se de dor. Um artista. Dei um bicão no bicho, pegou bem na sua lateral. No último momento,  percebi que não precisava sofrer, o cão poderia sofrer por mim, o resultado seria o mesmo. Bom ser um racional versus um irracional. 

- Seu animal!!!
- Ele tentou me morder!!!
- Mentiroso!! Ele só queria cheirar você, seu porco assassino!!!
- Ele vai ficar bem. Vamos levar no veterinário.
- Tadinho do meu Toby. Assassino!!!

O cão do demônio sobreviveu. Nós três estamos morando juntos há quatro meses, love story. Toby tem medo e raiva de mim. Ele come minhas havaianas, mas isso é um preço baixo por expulsá-lo da cama de Letícia. 

José FRID

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