terça-feira, 10 de dezembro de 2019

O tempo e o mar.....

O tempo é meu aliado, a minha casa. O tempo é uma invenção, ele simplesmente é. O tempo sou eu. Eu sou. Esse tempo contado, fragmentado, não existe, nós é que o inventamos. O tempo não está passando por nós, e sim nós é que estamos passando por ele. Somos nós que acessamos o tempo em algum instante. Se eu me submetesse ao tempo já seria um homem velho. Não tenho medo do tempo, tenho medo é do mar. Acredito que meu medo do mar seja um trauma de infância, quando minha família viajou da Bahia para o Rio de Janeiro de navio, durante a guerra, e pegamos um imenso temporal. Minha memória desse episódio é muito fragmentada, mas recordo das lembranças de minha mãe: ela diz que eu fiquei na cama olhando a tempestade por uma pequena janela redonda, vomitando o trajeto inteiro de tanto enjoo. Estava tão assustado com a tempestade e com a imponência do mar que não conseguia levantar da cama. Teve também outro episódio na infância em que me afoguei no mar e fui resgatado por um homem que não tinha um braço. Penso que esse medo do mar se alastrou por toda minha vida, mas não me paralisou, me fez aprender a lidar com o tempo. Eu faço o meu tempo da forma como penso e digo, como encaro a vida: trabalho com a palavra, sou um ator que canta. A palavra é o pensamento materializado, pois as palavras têm poder. Os místicos já diziam isso, nós criamos o nosso tempo.  

Ney Matogrosso in Vira-lata de raça - Memórias

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