sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

O quê fazer com essa informação?

Ela acordou e percebeu que tinha morrido. Fechou os olhos, respirou fundo e abriu-os novamente. Sim, tinha morrido. Lá estavam o céu azul clarinho com nuvenzinhas brancas simpáticas, que seu pai copiara do teto de um cassino de Las Vegas. Tinha sido bom nesses anos todos acordar numa gloriosa manhã parisiense, com a Torre Eiffel ascendendo no cantinho, por trás da porta do quarto. Nem a segunda-feira mais negra resistia àquele azul digno de Monet. Paz, um céu de paz sobre ela, sua vida, seus pesadelos. Só abrir os olhos para os maus sonhos derreterem sob as nuvenzinhas algodoadas. E no meio dos estudos mais difíceis e/ou mais monótonos, gostava de dar uma pausa, levantar a cabeça e deixar o olhar navegar de nuvem em nuvem, sentir o azul celeste penetrar nos cantos mais escondidos do cérebro. 

Se o céu estava lá, no lugar de sempre, no chão estaria a amarelinha, que seu pai copiara da porta da sua primeira escola, o jardim de infância debruçado no mar. Uma trilha numerada que atravessava o quarto, indo dos seus chinelos à porta do banheiro, o céu da chegada. Sua mãe percebia quando ela acordava, os pulos de quadrado em quadrado ressoavam pela casa. Ficaria a manhã todo indo da terra ao céu e vice-versa se não fosse a bexiga querer estourar ou o berro de algum genitor sobre algum atraso em atividades cotidianas. O primeiro beijo fora ali, na casa sete, como prêmio ao namoradinho por conseguir pular direto da quarta à sétima. Fechou os olhos para lembrar-se do primeiro beijo, do rosto do namoradinho, do gosto do beijo, suas emoções na ocasião, mas só sobrara o registro histórico. 

A primeira vez. A primeira vez. Quisera muito que ela ocorresse sobre a amarelinha e sob o céu parisiense, mas os hormônios deles dois impediram que subissem as escadas, tudo ocorrendo na sala de estar, sobre o tapete amarelo com desenhos geométricos em preto. Sim, da primeira vez lembrava-se de tudo, não ficara só o registro histórico, mas todas as sensações, emoções, sentimentos, gostos, gozos, cheiros, o rosto de Ronaldo. Se a amarelinha e o céu gales ainda estariam no quarto, o tapete amarelo não resistiu à sua infância e adolescência. Leite, vômito, urina, doces, sopinhas, refrescos, macarronada, champanhe, arroz, sucos, feijão, refrigerantes, meleca, batom, cerveja, sangue, vinho, esperma, toda uma vida algum dia parara sobre o amarelo e o negro, manchas indeléveis que fizeram que fosse doado ao catador de bagulhos da rua. Morto, o tapete, não o carroceiro. Quem sabe, o homem também não estaria morto como ela?

A primeira vez fora no tapete, mas muitas outras sobre a amarelinha, em Paris, na casa quatro, na sétima, na décima, no céu, até na Torre Eiffel, com a dobradiça machucando suas costas. Na cama, sólida estrutura que aguentara todos os seus devaneios, madeira maciça escura com rebaixos redondos revestidos com borracha amarela.

Abriu os olhos: o céu azulzinho, a amarelinha, a cama preta e amarela. Morrera, com certeza. E agora? O quê fazer com essa informação?


José FRID

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