sábado, 18 de abril de 2020

Fascinação, raiva....

O cameraman vê o corpo de sua amante transformar-se sob seus olhos: aquele corpo que até então se entregava com simplicidade e rapidamente, ergue-se diante dele como uma estátua grega colocada num pedestal de cem metros de altura. Fica louco de desejo, e é um desejo estranho, que não se manifesta sensualmente, mas que enche sua cabeça e apenas sua cabeça, um desejo que é como uma fascinação cerebral, ideia fixa, loucura mística, a certeza de que aquele corpo, e nenhum outro, está destinado a preencher sua vida, toda a sua vida.

Ela sente essa fascinação, essa devoção, colar-se à sua pele, e uma onda de frieza sobe-lhe à cabeça. Ela mesma fica surpresa, nunca sentiu uma onda dessas. É uma onda de frieza, como existem ondas de paixão, de calor, de raiva. Pois essa frieza é realmente uma paixão; como se a devoção absoluta do cameraman e a rejeição absoluta de Berck fossem duas faces de uma mesma maldição contra a qual ela se rebela; como se a rejeição de Berck quisesse devolvê-la aos braços de seu amante banal e como se o único recurso contra essa rejeição fosse a raiva absoluta contra esse amante. Eis a razão pela qual ela o recusa com uma tal raiva, querendo transformá-lo em camundongo, transformar esse camundongo em aranha e essa aranha numa mosca devorada por outra aranha.


Milan Kundera in A Lentidão, Nova Fronteira, 1995, págs. 109/110   

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