sábado, 8 de agosto de 2020

Ler, Escrever, Ser

Minha neta tem um pouco mais de cinco meses. Quando vou poder comprar um livrinho para ela ler? Os pais me desanimam, dizem que vai demorar um pouco para ela se interessar por leituras, agora só quer saber de mamar, agarrar os pés, virar-se no berço, colocar tudo na boca, dormir e chorar, não necessariamente nessa ordem. Não lembro quando ou como aprendi a ler. Meus pais eram grandes leitores: livros, jornais e revistas em todos os cantos da casa. Devo ter desejado aprender logo a ler para compartilhar aqueles objetos mágicos, mas não tenho lembrança dessa fase. Não fui precoce na leitura, uma criança normal, aprendendo na escola no momento determinado, tarde para os dias de hoje. Tenho inveja de quem se lembra de como aprendeu, da cartilha que usou. Vovô viu a uva. Recordo apenas em ficar depois da aula treinando caligrafia, minhas primeiras letras devem ter sido terríveis. Espero que a minha neta puxe, neste aspecto, a mãe ou a avó, que têm letras bonitas. Mas será que até lá ainda se usará letras manuscritas?

Minhas letras não melhoraram, tem horas que não as entendo, verdadeiro código secreto. A secretária tinha dificuldade em interpretá-las, naquela época pré-computador, usando uma IBM elétrica de esferas. Não me incomodava em fazer correções no texto datilografado, mas uma coisa me tirava do sério: palavras inexistentes! Não entender a letra e trocar “pacto” por “pasto” ainda passa, mas por “palto’? “Palto”? “São” por “não” seria aceitável, mas por “rão”? “Rão”??? Hoje, com computadores, sofro ao digitar minhas anotações.

Outra lembrança dessa fase é sobre o uso do eme ou do ene antes do pê e do bê. O livro mostrava que as letras pê e bê eram gordinhas, pesadas, por causa da barriga grande. O ene era um nadador fraquinho, só tinha dois tracinhos, enquanto o eme era fortão, três traços, só ele conseguia salvar as duas letras obesas do lago. Até hoje não esqueço essa bobagem e, lógico, nunca erro. Será que minha neta vai aprender sobre letras obesas e letras salva-vidas?

Tenho uma recordação agradável, já dominada a arte de juntar letras em palavras. Terceiro ano do primário, uma redação premiada! A professora devia entender de hieróglifos traçados a lápis em papel almaços. Após lê-la na frente da turma, ganhei parcos aplausos e algumas guloseimas. Sofrimento para o tímido, alegria para o gordinho guloso que eu era (sou). Não lembro o tema da redação, talvez o registro de um passeio ou das férias. Guardei com carinho aquela redação por anos, relendo algumas vezes, até o papel pautado, com meu nome no cabeçalho, começar a desfazer-se e o grafite sumir. Pensei em copiar a redação, agora a tinta, mas na ocasião, do alto dos meus doze, treze anos, achei o texto tão bobinho que, envergonhado, joguei a surrada folha no lixo. A literatura brasileira perdeu um manuscrito precioso! E minha neta nunca vai ler sobre o passeio que o avô fez em priscas eras. Na vez dela, o relato será feito com celular, com cores, movimentos e sons. Guardado nas nuvens.

Por falar em prêmio escolar, ganhei outro no início do ginásio, hoje chamado de Fundamental. Não me recordo do motivo da premiação, mas o brinde foi inesquecível: um livro com os Discursos do Presidente Castelo Branco. Tentei lê-lo, Deus é testemunha. Insisti porque, quando pequeno, antes da época daquela redação premiada, estava em dúvida entre ser leiteiro ou presidente. Ler os discursos de um deles poderia indicar o caminho da presidência. Fez efeito contrário, resolvi ser astrônomo, viver no mundo da lua. Será que minha neta já sabe o que quer ser? Presidente também? Leiteiro não há mais...

José FRID

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