domingo, 23 de agosto de 2020

Eternidade.....

ANDO COM JOE NA SUA MOTO, SENTADO DE  costas para ele, arrastando os saltos dos meus novos crepe-solas pela rua da cidadezinha sulista - sinto vontade de pedir para que ande mais devagar e possa me virar de frente, mas ele não ouve ou não liga, é em Rocky Mount ou Kinston, atravessamos os trilhos da estrada de ferro e saímos a toda a velocidade campo afora, mas de repente o chão foge dos nossos pés  e um grande precipicio, com areia lá embaixo, numa garganta de trezentos metros de altitude, se escancara para nós e não nos resta mais nada senão despencar, mas Joe mantém a esperança louca, desvairada, de que as rodas vão cair na posição certa, o que mais ou menos acontece, e saímos rodando como se fosse um cavalete; no fundo há um riacho seco, outra subida por uma encosta íngreme e arenosa como aquelas em que dávamos saltos mortais no Lawrence Boulevard - vasta e aterradora espera - um casebre ocupa a ladeira oposta, nós entramos, uma garota bonita chamada, se não me engano, Ann Buee, mora ali com a mãe - tem gravador, livros, se sente solitária - entro nu, de pau mole, começo a conversar, Joe desaparece, tenho que ir embora para conseguir dinheiro ou trabalho, mas quero voltar pra casar com ela - é da cor do mel, inocente, em seus doces dezesseis anos - quarto de dormir atulhado de coisas - a melancólica luz do sol da encosta orenosa enche de eternidade as janelas do casebre.

Jack Kerouac in O Livro dos sonhos, L&PM Pocket, tradução de Milton Persson, págs.59/60

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