segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Melão com presunto

Melão com presunto. Ou seria presunto com melão? Toda vez que como melão em fatias, penso que ele deveria ser servido com presunto, trazendo-me à lembrança um dia específico no fim da infância, início da minha adolescência. O melão seria a minha "madeleine", mas como não sou Proust, essa constante lembrança não consegue inspirar-me sete volumes e duas mil e quinhentas páginas, mas apenas esta pequena crônica.

O curioso é que a lembrança é sempre a mesma: eu e meu pai sentados à mesa da cozinha do apartamento de Botafogo, um melão entre nós. Sem mãe, irmã, empregada. Onde estariam? Devia ser um sábado ou domingo, por meu pai estar em casa de tarde. O melão seria a entrada do almoço? O lanche da tarde? Detalhes perdidos no tempo.

Meu pai colocou dois pratos na mesa, com presunto, e uma travessa larga vazia. Ele trouxe da geladeira a fruta amarela, colocou-a na travessa e disse: "melão espanhol, você vai gostar". Eu já conhecia algumas coisas da Espanha: toureiros, Dom Quixote, castanholas, azeite, flamenco, vinho, o dono da quitanda perto de onde morara, agora iria conhecer o melão. Parecia-me uma melancia pequena ou uma laranja bem grande.

Papai pegou um facão, espetou-o, com uma certa dificuldade, numa das pontas do melão. Segurando a fruta com a mão esquerda, fez o facão deslizar pela casca até a outra ponta. O corte pareceu-me um sorriso, um sorriso "melãocólico". Sacou a lâmina, rodou a fruta, cravou-a e deslizou-a com maestria até encontrar com o primeiro corte exatamente na outra ponta. Cortes precisos, cirúrgicos, permitindo a extração de um bonito pedaço da fruta. Levantou uma ponta do pedaço com o facão, o suficiente para retirá-lo e colocá-lo no prato. Fiquei surpreso: o tal melão não se parecia, por dentro, nem com melancia nem com laranja. Tinha uma poupa amarelo-esverdeada, com muitas sementes quase brancas na parte superior, achatadas e alongadas, presas por uma gosma amarelada. Nada daquelas sementes pretas pequenas da melancia, encrustadas em toda a fruta, que a gente tinha que cuspir para não ter apendicite ou morrer, como minha mãe alertava. Engolindo um daqueles caroços pretos e brilhantes, nem dormia de tanta preocupação.

Voltando ao melão, meu pai deslizou o facão pela parte superior daquele pedaço, separando as sementes. Depois, deixou o facão percorrer a fatia da fruta em paralelo à casca, mas com pressão exata, de forma que a parte cortada ficasse sobre a casca. Parecia um toureiro espanhol manejando espada. Agora o facão vai de cima para baixo cortando a meia lua em pequenos pedaços geométricos. O pedaço ficou parecendo o sorriso do gato da Alice, brilhando no escuro. Uma simpatia, esse tal de melão espanhol.

Meu pai repetiu a operação, colocando um sorriso no seu prato. Uma coca para mim, uma cerveja para ele, não é que o melão com presunto era bom mesmo? O doce da fruta contrastava e completava o salgado do presunto. "Quer mais?" Repetimos. Ficou na lembrança o melão espanhol, como meu pai frisava. Do presunto não guardei a nacionalidade, poderia ser um parma, um brasileirinho, mas era coisa do dia a dia. 

A Martina, apesar da tenra idade, já conheceu melão e adorou. Entretanto, a fruta já chega para ela em pequenos pedaços que possa pegar com a mão. Um dia, quem sabe, ela já grandinha, podendo comer com garfo e faca, repetirei o balé do corte da fruta, farei o sorriso do gato da Alice para ela, apesar de não ter a precisão geométrica de papai.

Outro dia fiquei pensando porque aquele melão seria espanhol. Pesquisando, constatei que, por muito tempo, o melão comercializado vinha da Espanha, no Brasil só era encontrado em pomares caseiros. Depois, com o aumento da demanda, as plantações comerciais transformaram o Brasil em grande exportador de melão, não só do tipo espanhol, como de outros tipos, com cores e sabores variados. Ao Mercadão!

Na Espanha existe um ditado popular que diz que o "melão pela manhã é ouro, ao meio dia é prata e pela tarde mata", querendo mostrar que o melão sendo um fruto alcalizante, cai melhor no desjejum. Papai dera-me prata ou queria matar-nos? Aqui estou, foi prata!

Passei por uma fase de problemas com uma hérnia de hiato. O médico suspendeu tudo que eu gostava de beber: bebidas alcoólicas, refrigerantes, chocolates, mates, etc. No dia a dia, a proibição que mais me incomodou foi o mate, que tomava toda tarde nas lojinhas em volta do trabalho. Tive que trocar por suco de melão. Uma vez o empregado da lanchonete fez o suco na minha frente e, quando colocou os pedaços da fruta no copo do liquidificador, quase perguntei se não dava para bater com umas fatias de presunto…..

Nesses anos, comi muitos melões, no Brasil e no exterior, com ou sem presunto, de diversos tipos, mas aquele primeiro é incomparável, o único memorável. Não se tem mais melão espanhol como aquele? Ou aos outros faltou o ingrediente especial, meu pai?


José FRID

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