segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Kendra

Kendra acalenta a ideia de ter um filho. Todo aquele sexo não deveria servir só para o prazer, ela pensou. Seria sua resolução de ano novo. Um novo ano, uma nova década, uma nova vida, um bebê. Lembra-se que, muito nova, teve a oportunidade de ter um filho, que estaria hoje maior do que ela. Optou por não ter, uma decisão que achou acertada na época. Hoje ela tem dúvidas, mas está resignada. Com um filho, sua vida seria totalmente diferente, talvez nunca chegasse a Marte, seu grande sonho. Ela é realista e tem consciência que a vida é uma sequência de opções abandonadas, que não adianta ficar pensando no que poderia ter acontecido se outra fosse a decisão. "Não se deve chorar pelo leite derramado ou pela xícara quebrada", dizia sua avó. Seus trinta longos anos lhe mostraram que a vida não é um jogo de xadrez, com regras claras e precisas, mas um jogo onde o tabuleiro tem casas incertas, as regras mutáveis e o adversário nem sempre é conhecido. Não dá para refazer a jogada. Mexeu a peça, tem que assumir as consequências, fazer o melhor possível com o que se tem a mão. A vida é dura, mas bela, ela sabe. A Lua venceu o filho. Mas em novos tempos, outra decisão deve ser tomada. Qual, ela se pergunta. Depende só dela, reconhece.

 

Kendra está pronta para ir correr. É uma boa atleta. A Space Corps incentiva a prática de esportes, o trabalho duro e o sexo por prazer, meios eficazes de controle social, indispensável na manutenção de humanos confinados em colônias. Ela pratica as três atividades com igual interesse, dedicação e prazer, tornando-se uma marciana exemplar. Kendra veste a malha térmica laranja, resistente ao frio intenso e aos raios cósmicos, com ajustes para movimentos atléticos. Óculos espaciais, insuflador nasal, protetor bocal e garrafa de oxigênio. Olha-se no espelho, está muito séria, parece ser uma mergulhadora. Veste sobre a malha um conjunto preto de short e top, presente de Natal enviado da Terra pela sua prima Anna, que dá um toque sensual ao conjunto. Afinal, hoje é dia de festa. Pretende ir até Marte-69 pela trilha que acompanha o Vale do Sol, sobe pelo cânion o Monte das Esferas e segue pelo planalto margeando o Lago Loch Ness. Ela gosta desse caminho porque nele encontrará muitas plantas transgênicas que foram adaptadas com sucesso ao clima e solo marcianos por sua equipe de pesquisas. Todos no espaço são vegetarianos, pois a Space Corps considerou sem sentido prático ou econômico criar animais no espaço para abate. Carne só de tecidos musculares criados em laboratório.

 

Kendra pode ter filhos, é uma jovem mulher saudável. Não haveria problema, só querer e providenciar a criança pela forma mais prazerosa proporcionada pela natureza. Companheiro fixo ela já tem, poderia ser um projeto a dois, criar um bebê. Entretanto, Kendra não pode ter filhos, por contrato. Não adianta querer, agora tem que cumpri-lo, pois sabe que não há como sobreviver no planeta sem um contrato válido. Ela descortina algumas possibilidades de conciliar desejo e obrigação. Será outra difícil decisão sobre ser mãe que deve tomar. Se opções que tem significarem realmente ser uma mãe.

 

Correr é essencial para ela quando tem que tomar alguma decisão séria, a atividade física ajuda-a concentrar-se nos pontos mais importantes do problema, analisar as variáveis, achar os caminhos possíveis, optar, decidir. Ela pega a garrafa de isotônico, liga o localizador e deixa sua colônia. As botas vão levantando poeira vermelha e trazendo-lhe recordações. Kendra tinha visto filmes e fotos da mãe em campanhas pró-aborto no fim do século vinte. "O corpo é meu, eu decido" estava escrito no cartaz que sua mãe segurava numa passeata. Ela lembra que a mãe tentava incutir-lhe a ideia de que a mulher tinha todos os direitos sobre seu corpo e poderia decidir livremente se queria ou não ter filhos. Alertava a filha que, obviamente, isso ocorria apenas nas sociedades democráticas, pois nos estados religiosos, a mulher não era  nada, seu corpo pertencia ao homem, à religião, e em ditaduras,  de esquerda ou de  direita,  os corpos femininos eram subjugados aos interesses dos ditadores. "Por isso é importante batalhar pelos direitos das mulheres, minha filha, pela democracia, contra todas as ditaduras. A liberdade das mulheres, a minha e a sua, está na liberdade da sociedade", doutrinava sua mãe, palavras que Kendra absorvia, sem entender muito bem o alcance delas em função da sua idade. Kendra hoje sabe que a luta das mulheres continua na Terra, mas que no espaço os corpos das mulheres não são delas. Por contrato. Ela sente na pele que a  Lua e Marte não são sociedades livres, apenas locais de trabalho.

 

O Vale do Sol termina e Kendra entra no cânion para começar a subir o Monte das Esferas, Arfa um pouco, a inclinação é forte, são quase mil metros a galgar. O trabalho árduo a faz recordar a dificuldade de seus pais em decidir irem para a Lua. Sua mãe teria que assinar um contrato abrindo mão do direito de engravidar. Seu corpo ficaria sob a supervisão da Space Corps Inc., que lhe implantaria dispositivo anticoncepcional fixo. O pai se submeteria a aplicações quinzenais de remédios que o tornaria temporariamente infértil. A corporação queria ter segurança máxima, o casal teria que fazer exames semanais para comprovar a esterilidade de ambos. Kendra recorda-se que questionara a mãe sobre a coerência da sua decisão de submeter-se aos interesses dos outros, indagando sobre onde estaria a liberdade que tanto pregava. A mãe retrucara que era coerente, pois o corpo era dela, a decisão também, sem nenhuma pressão externa, pois, se quisesse, poderia não ir para a Lua. Ela tinha toda a liberdade para decidir sobre o contrato de trabalho lunar e optara por não levar Kendra e o irmão com eles e por não ter mais filhos.

 

Kendra contorna uma imensa rocha no meio do caminho e recorda-se que não pode ir com seus pais para a Lua porque estava em fase de crescimento, dez anos. Só quando ocorresse a sua menarca receberia autorização para embarcar, já com o dispositivo anticoncepcional instalado. As pesquisas com ratos, cães e macacos tinham constatado deformações nos fetos desenvolvidos em condições lunares. Não iriam arriscar com seres humanos. Monstruosidades não eram boas para os negócios espaciais. Mesmo novinha, poderia ser desejável pelos homens confinados nas colônias lunares. O sexo era incentivado pela empresa como um meio seguro e barato de controle da população expatriada, ocupando as horas ociosas no espaço.

 

Ela completa a trilha íngreme. Na beira do planalto consegue enxergar, ao longe, na paisagem desértica, os módulos hexagonais da sua colônia, conhecida como "Colmeia". Emociona-se, é seu lar há tantos anos, vida muito feliz. Pensa que seria muito bom ter uma criança para cuidar, mostrar as belezas do planeta, ensinar a viver nas colônias, correr com ela pelas planícies avermelhadas, subir as montanhas, ver o por do sol, contar as histórias da colonização sob o céu estrelado. Lar, enquanto tivesse um contrato.

 

A atmosfera limpa permite que Kendra veja a quilômetros de distância. A planície pedregosa, avermelhada e desértica pontilhada por inúmeras colônias mostra o sucesso das pesquisas dos pais.  Agora são milhares de humanos nas centenas de colônias espalhadas por Marte, todos trabalhando para a Space Corps Inc., todos estéreis, por contrato. Retoma a corrida, só faltam cinquenta quilômetros até Marte-69. Espaço e tempo que têm que ser suficientes para ela conseguir decidir entre as opções que lhe parecem disponíveis: ter um filho em Marte, ir para a Terra ter o filho ou ter um filho na Terra. Ela acha que é uma decisão tão difícil quanto a de seus pais ao decidirem viajar para a Lua. A diferença é que eles poderiam optar por não assinar o contrato e permanecerem na Terra, enquanto ela tem que decidir com o contrato em vigor e a dezenas de milhões de quilômetros da Terra.

 

Correndo, Kendra recorda que seus pais explicaram aos filhos que a viagem era uma oportunidade rara e imperdível, que os filhos tinham que entender e aceitar a decisão deles. Seriam os médicos da primeira colônia lunar, quinhentas cobaias humanas confinadas em colônias-laboratório. Liderariam, também, o desenvolvimento de inúmeras pesquisas sobre os efeitos do espaço nos corpos e mentes humanos. Condições gerais de saúde, desempenhos físicos, saúde mental, alimentação, efeitos dos remédios e tratamentos terrestres, ingestão de bebidas alcóolicas e de drogas variadas, todos os aspectos da vida espacial seriam estudados, inclusive a possibilidade da reprodução humana extraterrestre. Cobaias animais e vegetais também seriam empregadas nos estudos, visando a autonomia da vida na Lua e em Marte, a próxima parada da Space Corps Inc. Uma proposta desafiadora e muitíssimo bem remunerada. Os pais falaram que a viagem era o futuro dos filhos, o futuro da humanidade. Kendra se recorda que ela e o irmão não conseguiram contestá-los, tristemente mostraram alegrias pela viagem.

 

Kendra agora corre às margens do Lago Loch Ness, um lago sem água, tão falso quanto o monstro escocês. Passa sob um renque de goiabeiras que lhe provocam recordações da casa da tia Márcia, com quem moraria até a hora de embarcar para a Lua. Vem-lhe a visão das pequenas goiabeiras do fundo do quintal, sob as quais perdeu a virgindade diversas vezes, sempre com o menino bonito da casa ao lado. Kendra sorri ao lembrar que, para surpresa de todos, seu passaporte para a Lua veio da gravidez inesperada e não da menarca tão desejada. Como aprendera, a natureza só pensava no lema "crescei e multiplicai". O esperma do jovem localizara seu primeiro óvulo maduro, evitando seu desperdício. Despreparada, tivera que tomar uma decisão, difícil para uma mulher madura, dificílima para uma menina sozinha.

 

Emocionada, Kendra para em um mirante turístico, onde equipamentos especiais emulam a água serena de um lago, com pequenas vagas provocadas por uma brisa leve, que a malha térmica não deixa sentir, mas percebida no movimento das folhas das árvores circundantes. Simulacros de pássaros voam sobre a água inexistente, completando a aparência terrestre do local, onde muitos vão matar as saudades de casa. Com os olhos fixos na imagem da água do lago, ela recorda a reação da mãe à sua gravidez. Objetiva e clara, como sempre, serena na tela do celular. "Você sabe o que eu penso disso. O corpo é seu, você é quem decide o que vai fazer com ele. Mas não pode vir para cá grávida nem trazer o bebê. Você quer gerar um monstro? Ou condenar seu filho a deformidades? Pode tirar ou ter a criança e criá-la, eu mando dinheiro para vocês. Ou deixar com a Márcia e vir para cá, como é seu sonho. A decisão é só sua. E do menino, se ele se interessar. Mas o corpo é seu."

 

Kendra percebe que está novamente tendo de decidir entre três opções difíceis. Três. Sorri, a criança deveria se chamar Trindade. Ela retorna a corrida, o sol irá se por logo e com isso o frio vai piorar muito. Faltam trinta quilômetros até Marte-69, ela tem dez quilômetros para analisar cada opção. Pensa na primeira, que seria aditar seu contrato para tornar-se cobaia de reprodução humana extraterrestre, última etapa dos estudos iniciados por seus pais. Teria que concordar previamente, por contrato, que, a critério exclusivo da Space Corps, abortaria o feto se ele fosse defeituoso ou descartaria o bebê se ele viesse a apresentar doenças graves. Kendra emociona-se, é uma decisão difícil, um pouquinho atenuada considerando-se que as novas pesquisas mostraram riscos baixos de defeitos fetais com a adoção dos novos protocolos médicos. Ela sente que descartar o bebê é um eufemismo para matar a criança, seu filho. Caso aceitasse, não precisaria sair de Marte. Manteria seus sonhos espaciais e teria seu bebê. Para de correr ao relembrar as palavras da mãe: "Você quer gerar um monstro? Ou condenar seu filho a deformidades?" Daria para ela aceitar isso? Conseguiria abortar ou eliminar seu filho? Depois que nascesse, ele seria seu ou da Space Corps? Meramente uma cobaia?

 

Recompõe-se e segue pelo caminho para Marte-69. Mais dez quilômetros e Kendra analisa sua segunda opção. Negociar o contrato para conseguir o seu encerramento prematuro, com o pagamento, pela companhia, da viagem de retorno à Terra. Significaria trocar seu sonho de morar em Marte pela criação do filho. Ela se interroga: a criança mereceria tal sacrifício? Cobraria do filho a frustração de seus sonhos espaciais? Quereria tanto um filho para abrir mão de seus sonhos mais importantes? Angustiada, acelera seus passos como se no final da trilha houvesse a resposta certa. Relembra Shakespeare: "Nós somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos". O que seria dela sem seus sonhos? Mais uma desiludida e infeliz na Terra? Ser mãe bastaria?

 

Kendra já consegue ver as luzes de Marte-69. Ela começa a analisar sua última opção, que seria continuar no planeta e usar seus óvulos armazenados na Terra para gerar uma criança, num útero artificial como muitas mulheres faziam para não passar pelos desconfortos da gravidez e do parto. Depois do nascimento, mandaria entregar a criança para a tia Márcia criar, como seus pais fizeram. Ou mesmo para a sua mãe, em vias de se aposentar na Lua.  Poderia acompanhar o crescimento da criança por meio de hologramas sensoriais, cada dia mais reais. Poderia sentir o cheirinho do bebê e ele o dela, como mãe e filho. Escutaria sua voz e ele a dela. Estaria presente na vida da criança, mesmo estando a dezenas de milhões de quilômetros de distância. Poderia até segurar o bebê com o braço robótico e quando ele fosse maiorzinho, abraça-lo, acaricia-lo pelos hologramas. Mas isso seria ser mãe?  

 

Ela chega às portas de Marte-69, que está toda enfeitada para o réveillon, com faixas comemorativas nos mais diversos idiomas da Terra. São dois dias terrestres de festas para atender a todos os fusos horários, pois os habitantes de Marte vieram de quase uma centena de países terrestres, fruto da política da Space Corps Inc. para a diversidade de seus trabalhadores espaciais. No calendário da empresa ainda existiam festas de comemoração dos Anos Novos Chineses, Judaicos, Muçulmanos e de qualquer outra religião.

 

Kendra reconhece, satisfeita, que a corrida teve o efeito esperado. Chegara ao âmago do problema. A questão não era decidir entre as três opções, mas definir o significado de ser mãe. O que ela esperava da maternidade? Que sentimentos a criança preencheria? Quanto ela estaria disposta a renunciar pelo filho? E seus sonhos? E sua vida? Conclui que precisaria de muitos quilômetros vermelhos para chegar a uma decisão, mas não se preocupou. Era uma mulher saudável de trinta anos e poderia esperar. Feliz, entra em Marte-69, retira a malha amarela e os acessórios, ajusta o conjuntinho preto e cai na folia do réveillon de dois mil e cinquenta. "Mamãe eu quero, mamãe eu ...."


José FRID

 

 

 

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