segunda-feira, 22 de janeiro de 2007

Ano Novo carioca



"Comigo dentro, não!"


Um pouco depois:

"Um feliz Ano Novo para vocês todos!"

Os estampidos ainda ressoam. Ninguém responde.

"Ô gente boa, animação, vamos lá. Feliz Ano Novo!"

A lembrança dos estampidos faz com que eles respondem em uníssono: "Feliz Ano Novo para você também!"

Ele sorri, satisfeito. Pede para o motorista parar o ônibus. Desce, coloca a mochila nos ombros, acena para os passageiros e some no meio do chuvisco, lá para os lados do Sambódromo.

O motorista fica olhando o vulto diminuindo, diminuindo .. ...

" louco, motorista? Vamos que ele pode voltar pra acabar com nós!"

O motorista sai do seu torpor. Passa a marcha, sai devagar e pergunta sem olhar para trás:

"Pra onde vamos?"

"Pra delegacia", grita um. "Os que pularam podem voltar também!"

"Não é melhor ir para um hospital?", pergunta outro, informando que o Souza Aguiar está ali perto.

"Tão mortos. Melhor a delegacia", diz aquele que foi ao fundo do ônibus verificar.

Minutos atrás:

"Comigo dentro, não!"

Pipocam os estampidos. Tantos que não dá para contar. Dois pulam do ônibus em movimento pelo vão da janela quebrada.

Silêncio. Ele observa, ainda com a arma na mão. Um caído no chão, outro sentado, imóveis. Os passageiros, petrificados. O zumbido morno do ônibus em marcha lenta. Ele olha ao derredor. Nada. Lá fora só a chuvinha chata que vem caindo desde o outro ano.

Guarda a arma na mochila e se dirige à frente do ônibus dizendo "um feliz Ano Novo para vocês todos!"

Mais minutos atrás:

"Crack, clink."


Os ruídos da quebra do grande vidro traseiro do ônibus assustam os poucos passageiros que restaram. Ninguém olha para trás. Medo? Indiferença, costume, hábito. Não querem se envolver com traficantes, bêbados, drogados. O vidro é do ônibus, que cuidem dele o trocador e o motorista.
"Crash", cai um vidro lateral. O cobrador esboça uma reação .....

"Vamo trocar tiros", grita o quarteto ensandecido. O cobrador se encolhe no banco, quer sumir atrás da caixa de dinheiro.

Os passageiros agora se agitam, preocupados, disfarçam, olham para trás, procuram ver se a confusão vai sobrar para eles.

Os quatros percebem que dominaram o ônibus. Um grita que quem olhar para trás vai levar bala, outro berra para o motorista parar o ônibus, o terceiro joga uma lata de cerveja no corredor. O quarto sorri sentado, entorpecido.

Os passageiros obedecem, o motorista não. O que jogou a lata grita "vamo botar fogo!". "Fogo", repete o entorpecido. "Vamo queimar tudo", gritam os outros dois. "Fogo, fogo!"

"Comigo dentro, não!"

Algumas horas antes:

"Feliz Ano Novo", "feliz Ano Novo", "feliz Ano Novo", "feliz Ano Novo", "feliz Ano Novo", "feliz Ano Novo", "feliz Ano Novo", "feliz Ano Novo", "feliz Ano Novo", "feliz Ano Novo", "feliz Ano Novo", "feliz Ano Novo", "feliz Ano Novo", "feliz Ano Novo".

Espoucam rolhas de sidras e espumantes baratos. Parece tiroteio no salão. Agora é tiroteio, lá fora. O pessoal do movimento está nas lajes comemorando 2007. Depois fogos, fogos barulhentos, muitos fogos coloridos. Os quatro amigos se abraçam, juram amizade eterna, se prometem um belíssimo ano novo, com muita mulher, dinheiro, cerveja .......

5:30, manhã de um dia chuvoso:

O ônibus da linha 355 - Cordovil-Tiradentes sai do ponto final em direção ao centro da cidade. Tirando o motorista, o cobrador e outro homem que acaba de largar do trabalho, todos estão alegres, alterados pela bebida e outras coisas mais, falando alto, agitados.

Um quer ir embora, vai trabalhar mais tarde. Os outros três amigos dizem "vamo junto", é perigoso sair sozinho àquela hora. Beijos, abraços, latinhas para viagem, "vamo nós", "um por todos, todos por um".

"Olha o busão", "vamo arrepiar", "somos os quatro cavaleiros do Apocalipse" .....

6:20, primeiro de janeiro de 2007, centro do Rio de Janeiro:

"Comigo dentro, não!"


(baseado em fato verídico)




José Frid

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