segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Oitavo dia - Vida normal


Oitavo dia.




Dia de ir ao médico. Que beleza: vou sair de casa, enfim! Colocar meias, sapatos, calça comprida. Andar de carro. Ver as ruas, outras pessoas, pegar engarrafamento, um progresso. O dia está bom, faz sol, em dias assim as chuvas só aparecem à tarde.



Ansioso, acordei cedo, fiz a barba, tomei banho. Os roxos da perna estariam melhores? Só um especialista para dizer. As pernas ainda estão cobertas com "xis" de esparadrapo, daqueles moderninhos com micro-poros. Troco os curativos das incisões, dois pontos próximos ao tornozelo, dois pontos na região inguinal. Da distância que vejo (não posso dobrar a perna), os pontos de cima estão bonitos, mas os dois debaixo estão feios, esgarçados. Como exibirei minhas pernas na praia? Será necessária uma plástica?



Pelo manual do médico, hoje é o dia de tirar os pontos, os "xis", colocar meias elásticas e voltar progressivamente à vida normal. Ginástica e direção de veículos só em trinta dias. Vou livrar-me das neuróticas rondas de quinze minutos pela casa – não há um só cantinho que eu não tenha visitado no mínimo muitas vezes. E estarei livre do repouso forçado: é bom ficar na cama ou no sofá, reinando, sem ter que fazer nada – desde que não seja obrigatório!



Entro no carro, sento atrás para poder esticar as pernas no banco, apoio os pés na moldura da janela, posição super desconfortável, e digo "Jarbas, vamos, olha a hora do médico". Minha mulher reclama que não é motorista de ninguém, eu respondo que são ordens médicas que não podem ser contrariadas. Meu sonho de consumo: um motorista! Ela sai pela garagem, não é dessa vez que o porteiro receberá meu bom dia.



As ruas, finalmente. O esperado contato com as ruas não é tão agradável como pensei: na posição que estou os buracos da rua massacram minha coluna. A santa que me leva pára para colocar combustível. O frentista, enquanto coloca álcool, fica me olhando com cara de quem está tentando adivinhar qual o meu problema. Como minhas pernas estão cobertas, imito um esgar de dor, estremeço-me todo. Ele fica horrorizado, nervoso, quase derruba álcool no chão.



O médico me deixa esperando trinta longos minutos. Não sei se posso sentar, logo caminho no corredor do edifício, muito maior que o de casa. Andar, andar, andar para lá e para cá. Chega uma hora que as pernas começam doer e arrisco sentar. A sala está cheia de mulheres trocando confidências sobre secar aquelas pequenas veias nas pernas. Que eu tenho haver com isso? Nada!



O médico tenta explicar como foi feita a operação: corta embaixo, corta em cima, enfia uma vareta especial por dentro da veia, chega lá em cima, abre uma garra, aí a gente vem puxando, ela vai virando do avesso, arrastando os outros vasos menores ...., pode parar doutor, só de pensar nisso já dói tudo, digo me arrepiando todo! Se eu gostasse disso, iria ser médico.


Ele remove os pontos e curativos e me dá alta. Manda eu usar meia elástica por dois meses, para ajudar na recuperação. Eu pergunto o que se entende por volta progressiva à vida normal. Ele fala simplesmente "vida normal". Eu insisto, "o que é vida normal?". Ele fala para minha mulher:



- O Português é mesmo uma língua difícil. Eu falo para levar uma vida normal e ele não entende!



Eu me intrometo na conversa e digo:



- Mas, doutor, com as pernas assim, doendo, dá para fazer tudo?

- Normal. O que é normal? O que você fazia antes da operação!

- Mas, doutor, quanto andar ...



Ele me interrompe e se dirigindo novamente à ela:



- Tá vendo com é difícil o português? Vida normal. Outro dia tive de dizer para um paciente que não esperasse dar três numa noite se ele nunca tinha feito isso!


- Quer dizer que não vou dar três agora?



Sou insistente. Posso dirigir, andar, correr maratona? Ele desiste e diz para eu ir fazendo as atividades conforme conseguir, progressivamente. Ah, a tal normalidade não é tão normal assim!



Saio injuriado do consultório. Vida normal! Tudo doendo, mal podendo andar, vida normal. E o cara metido a entender de português. Será que ele não sabe do grave erro do seu manual: "Qualquer duvida pergunte à seu médico", assim mesmo, sem acento, vírgula e crase errada!



Agora às meias! Meias elásticas de média compressão para ter vida normal. Isso lá é vida normal? Só se for normal para minha avó: nunca a vi sem suas meias elásticas. Ando firme uns cinqüenta metros até a loja de acessórios médicos. Experimento as meias prescritas pelo médico, já quero sair da loja com elas, mas a técnica explica que só posso pô-las de manhã, ao acordar. Vida normal só a partir de amanhã. Esse médico ...



Então, de volta à rotina das duas horas com quinze de caminhada pela casa. Meus quinze minutos só permitem o retorno ao carro e à casa. Nada de mate com pão de queijo. Mas não tem problema, tenho meu sorvete de operado para saborear. Além disso, meu quarto está perfumado por uma barra de Alpino, que vou degustando aos poucos. Quem disse que só mulher grávida pode ter desejos?



Corrida no parque, cineminha, chopinho com os amigos, a exposição da Tarsila, aguardem mais um pouquinho: breve vida normal com as meias da vovó!!


José FRID

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