terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Sete paus por noite




Noite de domingo, centro da cidade. Lugar perigoso. As ruas absolutamente desertas, só nós três naquela esquina, debaixo da marquise. A chuvarada alagando as ruas, subindo nas calçadas. Eu pareço um ricaço perto dos trajes deles. Sapatos versus conga e chinelas, jeans limpo versus calças surradas inidentificáveis. Camisa em oposição à camiseta desbotada de campanha política de um e à de time inconfessável do outro.


- Cansei de ser bonzinho! Agora vão ver! Todos eles!


E se ele deixar de ser bonzinho justamente agora? Encolho-me junto à parede. Sou só ouvidos. Por que não peguei um táxi? Se arrependimento matasse ...



- Sete paus por noite no quartão.
- Tá barato.
- Só sete. Já dormi nele. Bom. Tem até lugar para mala. Cama boa, sete paus. Pra hoje, com a chuva, seria ótimo. Limpo, sem bichos.
- E lá perto da rodoviária?
- Dez paus por noite. Aqui economizo três paus no primeiro dia, seis em dois dias, intero mais um e pago o terceiro dia. Mas hoje não dá, só tenho dois e cinqüenta no bolso. Nenhum nem outro. Vou ter que dormir por aí. Porra, logo hoje, com essa chuvarada toda.
- É, se não tivesse chovendo, dava para pegar um cantinho ....
- Tô tão cansado, rodei o dia todo, não arranjei merda nenhuma. Tá difícil, não tem trampo, é só não, não, não. Tô sem até pra comer. Como é que alguém pode não ter sete paus?
- Eu também não tenho. Não deu pra arranjar nada com a chuva.
- Sei. Sabe aquele prédio amarelo na Tiradentes, da pastelaria?
- Aqui perto. Já tentei trabalhar lá. Podemos comer o que agüentar.
- É lá. Tá sempre cheio, mas o dono gosta de mim, não dô pobrema, ele guarda o quartão pra mim. O problema é a grana, sete paus. Nem todo dia tenho tanto assim.
- É duro, também não arranjei nada. Sacanagem chover logo hoje. Vou começar a semana devendo...
- E vai ficar aonde?
- Eu fico com o carrinho no depósito ...
- Tem um canto pra mim lá?
- O dono não deixa. Não dá pra pegar uma vaga?
- Os dois paus é pra pegar uma média amanhã, senão caio duro e aí é que não arranjo nada. E vaga é foda, já fui roubado. Melhor dormir na rua. Sem chuva, é claro. Que fome!
- Qué um doce? Pega aí.
- Tô aqui pra arranjar um dinheiro pra levar pra casa, só posso voltar com grana, mas não consigo juntar nada trabalhando. Quando arrumo algum serviço, vai tudo no quarto e pra comer. O cara do quartão dá desconto pra semana, mas não consigo juntar. Essa chuva não vai parar?
- Que trampo você procura?
- Qualquer coisa. Já trabalhei na lavoura, sou bom de enxada. Pego no pesado. Olha os músculos. Mas não adianta, não consigo muita coisa. Que chuva, porra!
- Estragou o dia. Tô sem dinheiro pra trocar o gás. O milho tá frio.
- O carrinho é seu?
- Era. Não paguei o depósito, tive de dá de garantia, não paguei, agora é dele, tenho que pagar aluguel prá ele, duro pagar o que é meu!
- Pega e vai embora com ele. Posso ajudar você ...
- Aí não vou poder trabalhar por aqui, o cara vai ficar cercando ...
- E lá nos bairros?
- Os fiscais dão em cima, tomam da gente ...
- O carrinho?
- Tudo.
- Aqui pode?
- Estão com o dono do depósito, são sócios.
- Filhos da puta! Tudo filho da puta! A gente trabalha e só se fode! Dá vontade de sair matando um por um!
- É! Qualquer dia pego um. Porra, essa merda de chuva não pára!
- Pego o "berro" e faço um estrago.
- Já pensei nisso, também. Ô cara, não faz bobagem não. Eu já estive em cana e não é mole não ...
- Mas tem onde dormir, comida ...
- Sai dessa, irmão!
- As coisas vão mudar, vou deixar de ser bonzinho!


Pelo visto vou ter que ir no temporal mesmo. Mais vale um pinto molhado do que outro seco e estirado no chão ...


Eu tinha vindo pela rua larga. Fugindo da chuva, que me pegou de surpresa. De marquise em marquise, de árvore em árvore, cheguei até ali na esquina. Não deu mais para ir em frente. A chuva qual uma parede líquida, as ruas verdadeiros rios.


O ambulante lá já estava, com seu carrinho fumegando um cheiroso milho verde cozido. Talvez o cheiro é que tenha me atraído para aquela marquise. Ele tem doces caseiros também, arrumados na tampa do carrinho. Mistura insólita essa de milho com docinhos. Se o local onde foram feitos for do naipe do vendedor, boa indigestão darão. Tentei quebrar o gelo:


- Chuva, não?
- É, tá molhando. Quer um docinho, doutor? Minha mulher que fez ... um brigadeiro?
- Agora não, obrigado.
- Pra me ajudá.
- Não, obrigado.
- E milho?
- Acabei de comer, obrigado.


Ele não ficou muito satisfeito com minha resposta, ainda resmungava quando o trabalhador chegou de repente, pela rua lateral, quase me derrubando e trombando com o carrinho. Cumprimentou o outro, parece que se conheciam. Ele carregava um saco plástico nas mãos, desses de loja.


A chuva não pára, a conversa entre eles sim. Nos entreolhamos. Nós três olhamos para as ruas, a chuva. Só nós três ali. Não temos para onde ir com a forte chuva. Esperamos. Eu, a chuva passar. Eles ...


- Se arrumo uma grana, durmo seco, no quente ....


Um cutuca o outro e me aponta. O trabalhador balança a cabeça num sinal de positivo. Com a mão pede tempo. Tempo para quê? E se ele resolve deixar de ser bonzinho justo agora? O que será que ele tem naquele saco? E se o "berro" está lá? E o que tem o ambulante naquele carrinho? Parece que ele escutou meus pensamentos: abriu a portinhola, olhou lá dentro, se abaixou, remexeu em algumas coisa e ... tirou um facão!


Ele deixa o facão sobre o balcão e se abaixa novamente para pegar mais coisas dentro do carrinho. O trabalhador deposita o saco em cima do carrinho, pega o facão e o aprecia.


- Isso faz um estrago num homem!


O ambulante se levanta com um saco aberto contendo algumas espigas. Ele fala e vai arrumando outras espigas no saco.


- Não brinca com isso. Foi por ele que acabei preso, abri uma brecha num cara folgado.
- Eu podia fazer um ganho com ele. Me empresta ele?
- Preciso dele pra trabalhar, cortar o milho.
- Só hoje. Agora.
- Vê lá se não vai fazer besteira.
- É só mostrar e o cara dá tudo.


Ele vira a faca de um lado para outro, troca-a de mão, balança-a no ar, corta o espaço com ela e, por fim, a mostra para mim. Estou quietinho bem na ponta da marquise, na esquina, quase me molhando. Revejo mentalmente quanto tenho no bolso. Acho que só uma nota de cinqüenta, o resto deixei na lanchonete. E cartões de crédito. E se ele me pedir dinheiro? Dou a nota? Digo que não tenho trocado? E se ele resolver não ser bonzinho? Ele vai pedir ou exigir? E os cartões? O celular? Melhor sair correndo agora na chuvarada? Ele irá correr atrás de mim? E se eu escorregar e cair? É melhor eu tomar a iniciativa e oferecer o dinheiro? Dizer que escutei a conversa e quero ajudar?


Ele tira do saco uma jaqueta surrada e a veste, o facão na mão. Será a minha hora?


- Dá para você guardar no carrinho o saco de roupas? Pego com você amanhã. Não posso sair assim, com ele na mão.


O carroceiro enfia o saco num cantinho vazio, ao lado das espigas de milho verde. O outro fica repetindo um mantra, com o facão na mão:


- Cansei de ser bonzinho. Agora tudo vai mudar.


Agora, além da chuva, venta forte. Recuamos os três, nos aproximando. Eu que estava meio encoberto, agora estou no espaço vital dos dois. O carrinho bloqueia a passagem. Eles olham para mim. O facão está perigosamente perto, mas ainda não é agressivo. Meneio a cabeça, aponto a chuva e dou de ombros. Tenho que fazer alguma coisa. Correr? A melhor defesa é o ataque, dizem. Puxo conversa.


- Acho que nós vamos ter que sair na chuva, não?
- Eu posso esperar até a hora de guardar o carrinho.
- Não tenho para onde ir, posso esperar.
- Não posso esperar muito, senão perco o último ônibus.
- Ônibus?


A palavra ônibus foi uma ducha de água fria nos planos dos dois. O ambulante balançou a cabeça de um lado para o outro e se afastou um pouco. O outro insistiu.


- Tava fazendo o que por aqui, essa hora?
- Trabalhando.
- A firma não paga o táxi?
- Pagaria se eu ficasse lá por causa dela. Eu é que atrasei, não tem táxi.
- Usa sua grana, você merece.
- Tô desprevenido. Sem grana, cartão, nada. Só dá pro ônibus. Nem para um docinho desses dá. Tô sem comer desde de manhã. Posso pegar um e pagar outro dia? Acho que já te vi outro dia por aqui.


O pedido de docinho fiado foi a gota d'água. O ambulante pegou o facão, sem reação do bonzinho, e o colocou onde tinha tirado. Recolheu os docinhos em caixas sebentas e guardou-as dentro do carrinho, junto com o saco de espigas e a sacola de roupas do outro. Sacou um saco de lixo preto, vestiu-o como uma capa. Colocou sacos plásticos no conga e na cabeça, partiu no meio da chuva dizendo que tava na hora de fechar o depósito.


O outro olhou para cima, avaliou a chuva, fechou a jaqueta e partiu sem falar nada.


Fiquei só na marquise. Quase meia noite. Um breu só. Ninguém nas ruas, até onde a vista alcançasse. A chuva engrossou outra vez. Teria de caminhar uns dez quarteirões. Melhor ficar por aqui. De repente, por trás de mim chegam dois caras mal encarados. Eles olham para mim e cochicham. Usam jaquetas velhas de couro já esgaçado.


Vai começar tudo outra vez?


José FRID


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