segunda-feira, 31 de março de 2008

VIVEMOS



Quando nasci ela já estava lá. Forte, frondosa.
Quando morrer ela ainda estará lá. Frondosa, forte
(Se nenhum filho meu a cortar, são loucos esses jovens!)
Sou velho, muito velho acho eu,
Do tempo de nascer em casa.
Como meu pai e seu pai, meu avô.
Nasci aqui mesmo, no quarto ao lado.
Papai e vovô em outras casas, outros quartos.
Meus filhos não: já nasceram em hospitais, ficaram em imensos berçários, com todos a chorar.
(E como choravam essas crianças !)
Logo que pude ouvir, escutei o som do vento nos seus galhos e folhas.
Enquanto puder escutar, serão estes os sons que embalarão meu leito de morte.
Quando pude ver, logo depois do rosto de minha mãe, foi suas folhas coando o sol que enxerguei.
E serão estas imagens que reterei quando meus olhos fecharem pela última vez.
Quantas vezes dormi no carrinho, sob suas folhas.
Gostava de ver as gotas do sol surgirem e desaparecerem,
Conforme o balançar das folhas.
Eu tive pai e mãe; ela também.
Eles me acompanharam boa parte da minha vida, quem sabe a melhor;
Ela nunca soube quem foram os dela, sempre sozinha na praça (doada pelo meu avô)
Sou assim assado - a genética explica boa parte de mim;
Ela também puxou seu pai, sua mãe, sua família.
Traumas tenho da infância - pais, avós, família, etc. - invisíveis, marcados apenas em minha mente.
São tudo, toda a minha vida;
Seus traumas estão visíveis, marcados em seus troncos e galhos, mas segue sua vida indiferente a eles.
Tive filhos, ela também.
Os dela o vento levou, alguns o homem semeou.
Não sabe quantos são, onde estão, como estão.
Fez a sua parte, floriu, frutificou.
Do resto a natureza se encarregou. São árvores e basta. Não há erro. Homens não podem ser.
Os meus, a natureza abandonou. Estão aqui, ainda de mim dependentes.
Tive que alimentar, criar, ajudar, formar.
Formar? Na realidade, não sei quem são. Sempre me surpreenderam.
Homens? Não sei. Tentei, mas podem ser árvores. Vegetando. Errei? Não sei.
O que é o certo?
Ela sente seus novos filhos,
As sementes, férteis, úmidas,
Agonizando sobre o piso, na poça d'água, na terra dura, pisada.
Mas nada faz, nada pode fazer, a natureza a impele a ter sementes na época certa, todo ano.
Algumas vezes eu, meus filhos, meus netos, talvez meu pai, meus tios,
Pegamos algumas sementes para plantar, mas somos homens
Todas ou jazem em gavetas ou foram para o lixo em alguma "blitz" materna.
Eu sei como nasci, como vivo, a ciência tudo explica;
Sei que vou morrer, como morreram meus ancestrais. Mas que ganhei com isso? Nada.
Ela não sabe nada, apenas vive. Ancestrais? um caroço, um galho, uma folha.
Quem são, que valem? Nada. Basta viver, vegetar. O vegetal.
Nem morrer ela sabe que vai.
Um dia, um vento mais forte, um raio, uma moto-serra, um caminhão
E, por fim, tombada.
Ela não velarão: cortada em pedaços, enterrada no lixão.
Ou se der sorte, cremada numa lareira (talvez a daqui de casa mesmo)
Ou esquentando uma lata de sardinha de alguns mendigos daqui de perto.
Melhor sorte do que a minha.
Útil até na morte. (também posso ser, se meus filhos me colocarem na escola de medicina, meu velho corpo ensinando aos jovens como todos vão ficar)
Me mexo, me mudo, ando para lá e para cá.
Procuro, acho, perco, não sei o que quero.
Ela procura o sol e cresce; acha a água e os minerais e se fixa.
É tudo que ela quer.
Não há dúvida, não há busca, não há mudanças.
Enquanto o sol brilhar e a chuva cair, ela ali estará, plena, realizada.
Vivendo vegetal, vegetando.
Vegetando eu estou nesta cama.
Sei que vou morrer, sinto, mas não sei de quê:
O médico, os médicos não dizem,
Meus filhos escondem de mim, vai melhorar, "tá melhor".
E eu pior, cada vez pior. Sinto-me mais cansado a cada dia que passa,
Mais as dores aumentam.
Agora dói tudo, dói sempre: se durmo, se sorrio, se fico sério.
Mas sou pai. Facilito para eles, escondo a dor que sinto,
escondo a tristeza, sorrio.
Já sofrem tanto com a minha próxima partida,
Para que entristecê-los mais?
Melhor momento do dia é quando me acordam.
Na verdade quase nunca durmo: as dores.
Fico no escuro, quietinho, pensando em tantas coisas,
E em nada ao mesmo tempo.
Acompanho o soar das horas do relógio do corredor (agora não tenho mais medo dele)
E escuto o ressonar do meu acompanhante de plantão, um filho, uma filha, um genro, uma nora.
São jovens, ficam cansados logo.
Retomando, o melhor momento do dia
É quando a enfermeira me acorda com um belo bom dia,
Sorridente e profissional.
Abre as cortinas e Inclina minha cama para me pôr sentado
(escondo as dores do movimento com um sorriso, um brilho no olhar - tudo para ver a paisagem!)
E lá está ela, a velha e querida árvore, frondosa,
Minha companheira de tantos momentos.
O sol, o vento, a chuva, cada dia uma cor, uma forma.
Pena que não abrem a janela: pode fazer mal ao doente.
Gostaria de sentir o cheiro da árvore, das suas flores,
O cheiro que o vento traz, o cheiro da terra molhada pela chuva.
Cada dia imagino o cheiro que sentiria se lá fora estivesse,
Sob a árvore, ao lado do busto do meu avô.
Ainda escuto minha mãe gritar, "meu filho, sai de cima do seu avô !!!"
Por muito tempo, eu criança, após o berro materno,
parava de brincar e procurava em volta o velhinho baixinho e gordo,
Muito gordo, eterno Papai Noel, a distribuir balas e doces.
Demorei para associar aquele busto de bronze ao meu querido avô,
Meu herói.
Talvez só depois da sua morte.
Doeu muito ver a oficina vazia, os instrumentos todos em seus lugares
Como vovô deixou.
Limpos e mortos também.
Vovô também feneceu aos poucos neste quarto,
talvez até nesta mesma cama, quem sabe,
Olhando a árvore que tinha plantado num dia de festa,
Com os netos correndo em volta.
Papai não, já eram outros tempos, tempos modernos, foi morrer no hospital.
Branco, frio, iluminado, asséptico, sem uma árvore para olhar - 5* andar.
Vovô contava que tinha feito sua parte na vida: filhos, plantar árvores e livros.
Vovó dizia: velho mentiroso, pára com essas bobagens!
Quem teve os filhos fui eu, o jardineiro foi quem plantou suas árvores
E livros-caixa não são literatura.
Vovô sorria e não ligava: ela tinha reagido como ele esperava e isso bastava.
Eu, que já tinha dúvidas sobre como apareciam as crianças e as árvores (da loja? Da floresta? Uma plantação?)
Ficava me perguntando que livros-caixa eram aqueles, uma caixa que se lia ou livros que vinham em caixas?
Mas logo descobri que a coisa mais importante na família eram os livros-caixa.
Vi papai e vovô escriturando-os, dias e noites, ansioso para chegar a minha vez.
E quando chegou, adeus árvore. Anos e anos, caixas e caixas, livros e livros, e livros-caixa também.
Agora estou de volta, só a árvore por companhia. E alguns livros também.
Os livros das caixas estão com os filhos e netos.
Mas não ligo, que companhia me fariam, que cheiro teriam, suas cores pálidas não alegrariam meu dia.(hoje nem livros são, apenas discretos CD's)
Tenho minha árvore, forte, frondosa


José Frid

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