sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Arrufos Metropolitanos - XVI


A calcinha de oncinha ganhou. Retornando do banheiro, Adriana vê, de longe, que os dois aproveitaram sua ausência momentânea para se abraçarem e se beijarem. Mão na mão, mão naquilo, aquilo na mão. Integração da alta cópula da empresa. Conclui que está na hora dela partir, sobra naquele bar.
Chega de supetão, os dois se assustam e se separam totalmente sem graça. Ruth começa a tentar explicar a situação, mas Adriana não deixa a outra prosseguir dizendo que precisa voltar com urgência para casa. "Algo grave?", pergunta Ruth. "Não, é o cachorro", ela responde laconicamente. Satisfeita, a outra volta a dar atenção ao gato ao lado dela.
Adriana pega a bolsa e rapidamente se despede dos dois enamorados. A cabeça está a mil, enquanto aguarda o manobrista trazer seu automóvel. Foram tantas emoções naquele dia, as reuniões, as novas amizades, a promoção, o recado de Pedro Paulo, até o agarramento daqueles dois. A questão maior: como ele descobriu o telefone do seu escritório? Ela se sente violada, agredida. Respira fundo para se acalmar. Tem um longo caminho de volta, no escuro, vários chopes depois, não pode ficar com a cabeça perdida em devaneios.
Como o veículo tarda a chegar, é inevitável que seus pensamentos fujam ao seu controle e voltem para Pedro Paulo. Está surpresa por ele não atender o seu chamado. Não deixou milhares de recados pedindo para ela ligar? Não ligou para o escritório? Por que agora, quando ela liga, ele não atende. Como pode? Como ousa? O que será que houve? Será que estava dormindo? Não, é cedo para ele. Poderia estar no Metrô, sem sinal? Não, é tarde para isso. Teria feito hora extra? Ou uma reunião importante? Num bar, quem sabe? Enchendo a cara com amigos! Ou com uma sirigaita qualquer! "Mato os dois"!! Ela se arrepende de ter seguido a Ruth. Deveria ter insistido na ligação até ele atender!
"A culpa é da Ruth, não me deixou insistir no orelhão", fala sozinha. Pressa para quê? "Tá bom, queria agarrar o diretor. Mas atrapalhar minha ligação para o Pedro Paulo já é demais!"
"Quem diria, ela e o diretor. Será que é relacionamento antigo? Motivo da promoção dela? Ou pagamento da promoção? Será interesse verdadeiro? Amor? Sexo? Todas as opções acima?" Adriana lamenta não estar com o celular, pois ligaria imediatamente para as colegas contando a novidade e perguntando o que elas achavam da novidade.
Pensando bem, ela conclui que foi bom estar sem celular. Apenas ela na empresa viu os dois se agarrando. Logo, se a notícia aparecesse, saberiam que tinha sido ela que divulgara. A promoção, ou pior, o emprego, poderia estar em risco. Bendito esquecimento do celular!
Ela se entristece. Qual a utilidade de se saber um segredo e não poder contá-lo para ninguém? Para quem teria interesse no assunto, lógico. Qual a graça em contar, por exemplo, para sua irmã sobre o agarramento dos dois pombinhos? Ela não os conhece. Nada poderia concluir sobre a questão, não teria respostas abalizadas para suas perguntas.
Ela se recorda de uma piada contada pelo Pedro Paulo. Um avião caiu no Pacífico, só sobreviveram a Gisele Bündchen e um sortudo. Eles ficam em uma ilha deserta e acabam se envolvendo sexualmente. Um belo dia a Gisele acorda e encontra o homem triste. Pergunta o que aconteceu, ele responde que está tudo bem com ela, mas faltava alguma coisa. Ela se dispõe a ajudar. Ele, depois de pensar um pouco, pede para ela vestir um terno mal-ajambrado salvado do acidente, ir até o fim da ilha e voltar andando como um homem. Ela acha aquilo estranho – será que o cara é bissexual? – mas como só tem ele na ilha, ela atende o pedido. Quando volta e chega perto dele, ele faz um gesto para ela/ele se aproximar e cochicha no seu ouvido: "Sabe quem eu estou comendo? A Gisele Bündchen!!"
"Não basta faturar, tem que contar para os amigos", concluiu Pedro Paulo. Ela na ocasião ficou muito chateada com a piada, "são uns insensíveis, insatisfeitos, fofoqueiros, homem não presta, etc. e tal", mas agora entende: é horrível ter um segredo e não pode compartilhá-lo com ninguém!!
Ela é retirada de seus devaneios pelo som repetitivo da buzina do seu carro, ali parado à sua espera, atravancando o tráfego da porta do restaurante. Abre a bolsa para dar um trocado ao manobrista e acha uma tira amarela toda amassada. "Mais um bombom de Pedro Paulo! Ele quer me ver enorme!" Paga ao homem e, antes de entrar no automóvel, desenrola a tirinha e lê a mensagem: "Amar é encontrar na felicidade do outro a própria felicidade". Ela franze a testa. "Como é que é? Isso é demagogia barata". Amassa a tira e a devolve a bolsa. "Cada uma!", pensa em voz alta. O manobrista faz uma cara de quem dissesse "essa bebeu todas, está até falando sozinha!"
Sai com o carro devagar, tentando se concentrar na direção. Vai ter que voltar amanhã para Alphaville, vão explicar suas novas funções. Depois, um almoço de confraternização e palestras à tarde. Encontrará o diretor gato? Como agir com ele? Fingir que não viu nada? Ruth não estará presente, irá para o escritório da Saúde. Será que ele irá cumprimentá-la? Poderia jogar um charme para cima dele, só para atrapalhar a Ruth. "não, melhor deixar os dois quietos no canto deles".
As ruas quase desertas, a Castelo vazia, a Marginal tranqüila, permitem que seus pensamentos voem em todas as direções. Ela chega à conclusão que voltar amanhã para Alphaville é uma boa solução, pois se o Pedro Paulo der as caras no escritório não a encontrará. Por que evitá-lo? Ela não sabe, as coisas estão fugindo ao controle. O esquecimento do celular foi ato falho? Não sabe. Parece-lhe que foi simples esquecimento, culpa da correria ao sair de casa hoje de manhã.
"Ao chegar em casa, ligo para o cachorrão e ponho tudo em pratos limpos! Insisto até ele atender!" E se ele for no seu escritório amanhã? Será que irão dar o seu telefone de casa? Ou o seu endereço? Não, o pessoal é bem instruído, não vai fornecer dados particulares para qualquer um. Ela pensa em Pedro Paulo, imagina ele chegando no seu escritório. "Com seu charme e conversa mole, é capaz de conseguir extrair as informações da tonta da secretária". Precisa ligar amanhã bem cedinho para alertar a todos. Mas que mal haveria em ele bater na sua casa? Ela não gosta mais dele?
A mãe escuta o barulho do automóvel e vai abrir o portão da garagem.
- Minha filha, que susto! Por que você não avisou que ia demorar? Ficamos preocupados!
- Mãe, sem drama. Esqueci o celular em casa, você sabia.
- E não existe outro telefone no mundo?
- Eu liguei do orelhão, deu ocupado.
- Ligou só uma vez?
- Foi. Liguei no celular também.
- Devia ter insistido.
- Estava ocupada.
- Quer dizer que você não podia perder um tempinho e ligar para sua mãe, para eu não ficar preocupada?
- Não. Cheguei, não? Tô cansada e com dor de cabeça. Vou tomar um banho e dormir.
- Quer comer alguma coisa?
- Não, tô enjoada, comi alguma coisa que não caiu bem.
- Pelo visto, essa reunião acabou com você!
- É!
Elas entram, Adriana beija o pai e a irmã, que vêem televisão. O Olavo sente o cheiro e late lá do quintal.
- Esse cachorro passou o dia latindo para o seu celular. Tive que desligá-lo, senão Olavo não sossegaria, os vizinhos iriam reclamar.
- Brigada mãe. Vou tomar banho e dormir. Hoje foi puxado e amanhã vou ter que voltar, mais reuniões.
- O que está havendo, minha filha?
- Nada de importante, pai. Mudanças de rotina. Depois eu conto.
- Mudanças de rotina ou mudanças nas rotinas?
- Não enche, irmã.
- Como disse o Príncipe Salina: "É necessário que tudo mude se desejamos que tudo permaneça como está".
- É isso, pai. Tchau.
Adriana segue para o quarto arrastando os pés pelo corredor, dramatizando seu cansaço. Os três riem.
A mãe comenta com o marido e a filha que Adriana está arrasada, a reunião deve ter sido muito cansativa.
- Mãe, você não percebeu? Ela bebeu!
- Bebeu?
- É, senti o cheiro. Será que ninguém percebe nada nessa casa?
- Bebeu no trabalho?
- Não, né? Deve ter saído com alguém depois do trabalho!
- Será que foi com o Pedro Paulo? Ele ligou para mim hoje ....
- Para você?!?!?
- Não exatamente. Para ela, no celular. Eu atendi, pois o cachorro não parava de latir. Ele queria falar com ela.
- Mãe, ela não proibiu a gente de mexer no celular dela?
- É, mas o cachorro latia muito. O homem devia estar desesperado ...
- Como você sabia que era ele?
- Não sabia. Só vi o número registrado, várias ligações, achei que deveria ser importante. Pensei em pegar o recado e passar para ela no escritório. Podia ser um cliente.
- Ela já sabe?
- Não sei se já contei para ela. De qualquer jeito, dei o telefone do escritório dela para ele, que se entendam!
- Mas ela não estava em Alphaville?
- É, na hora fiquei nervosa e esqueci. Depois pensei que o escritório a localizaria e lhe passaria o recado dele.
- E como foi sua conversa com ele?
- Ótima. Convidei para vir aqui no sábado.
- Ela sabe disso?
- Sei lá. Convidei e acabou.
- Ele vem?
- Talvez. Vai falar com ela.
- Ela certamente vai proibir dele aparecer.
- Bem capaz. Mas vou ligar para ele na sexta e confirmar direto com ele. Insistirei.
- Você ficou com o número dele?
- Sim. Anotei depois de desligar.
- Vai dar confusão. Ela vai ter um piti!
- Não tou nem aí. Ela não pode ficar escondendo o namorado da gente. Sou a mãe dela, carreguei na barriga nove meses, fiz uma força danada para ela nascer, tenho direito de saber com quem minha filha está saindo.
- Dou o maior apoio. E se ele for um marginal, um tarado? Um viciado? Ou quem sabe, um traficante?
- Pai, não exagera. Se ele fosse assim, ela saberia e já tinha largado dele.
- Não sei não. Pode estar tão envolvida com ele que não percebe o que está bem na cara.
- Ele pode estar se escondendo da gente por causa disso.
- Ela é que não quer apresentá-lo para a gente.
- Talvez. E por que ela não quer? O que estará escondendo? Seu comportamento só confirma nossas suspeitas.
- Vocês estão loucos!
- Loucos não. Pais. Não defenda sua irmã sem saber direitinho das coisas
- Eu conheço ele.
- Conhece mesmo? Já esteve na casa dele? Sabe o que ele faz? Conhece a família dele? Amigos?
- Ele é de Santos.
- Piorou. Contrabandista, traficante, doleiro, essas coisas.
- Ele pode ter seduzido sua irmã, drogado ela. Pode ter proibido ela de mostrá-lo para nós, com medo da gente descobrir tudo.
- Vocês estão viajando ....
- Nada disso. Adriana é, ou era, uma pessoa alegre, normal, estudiosa, trabalhadeira, amiga, carinhosa ....
- E continua assim ...
- Não! Depois que conheceu esse infeliz mudou muito! Some, passa dias fora de casa com um cara desconhecido, não telefona, esconde o namorado ....
- Aí tem coisa! Você acha mesmo que é ela que está evitando que a gente conheça o camarada? A gente não morde, ela sabe!
- Eu acho que é ele que se esconde da gente! O cara é um marginal!!

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