Gonçalves encontra o banheiro em completa desordem. Pensa que precisam mudar de casa, pois Pedro Paulo não tem jeito. A solução é um banheiro para cada um. Ou cada um ir para seu lado. "Divórcio já", diz para o espelho embaçado pelo vapor da água quente.
A porta do quarto de Pedro Paulo está fechada. Escuta uma música bem baixinha, imagina que o colega dormiu com o som ligado. Ou será o despertador? Não, está cedo ainda. Hora de ele comprar pão e leite, fazer café. Pedro Paulo faz o supermercado, ele cuida do café da manhã. Boa combinação, cada um no seu biorritmo. Casamento duradouro, não é um banheiro bagunçado que irá atrapalhar a relação. E a faxineira está ali para dar uma força. Se não houver exageros!
A sala está como ele deixou, um brinco, tudo nos seus devidos lugares. As almofadas e o controle remoto. Pedro Paulo deve ter chegado tarde e ido dormir sem ver televisão. A história do anel deve ter dado certo. "Olha o nosso divórcio chegando", pensa Gonçalves. Só o tempo dirá. "Tempo senhor da razão". Pega o controle e liga a tevê no jornal da manhã. As notícias enchem o apartamento. Não se preocupa com o sono do amigo: ele dorme como uma pedra, nada o acorda.
O rádio-relógio vai despertar, tocar na orelha dele, mas não o acordará. Com certeza será necessário entrar no quarto dele e sacudi-lo até acordá-lo. Rotina de quase toda manhã. Abre as cortinas e o sol banha a sala. Pela janela vê o céu azul, a pracinha ainda vazia. Os bebês acordam tarde ou são as mães? As babás? Precisa matar uma manhã de trabalho para paquerar na pracinha. A oferta deve ser grande, ali ao alcance da mão. Só convidar para trocar a fralda no apartamento dele, uma água gelada, um suquinho, um leitinho para a criança e creu. Não pode perder a oportunidade, precisa planejar o dia certo.
Gonçalves segue seu caminho rumo ao café da manhã. Surpresa desagradável. A cozinha na maior bagunça: cartas espalhadas pelo chão, mesa, cadeira e pia. Copos, pratos, guardanapos. A garrafa de água esquentando sobre a mesa. Seu grill escancarado e sujo. Uma pepsi vazia!
- Pedro Paulo!, ele berra, ecoando nos azulejos da cozinha.
A quarta começou mal. Corre para o quarto do amigo, mas pára diante da porta fechada. Está sem o sinal combinado: o aviso de "do not disturb" vindo do hotel de Las Vegas. Ele esqueceu de colocá-lo ou está sozinho? O anel. Será que Adriana está com ele? Ela é bem bagunceira. Lembra que viu dois copos sobre a pia, mas nenhum estava sujo de batom, o que pode indica que ela não está em casa, pois nunca a vira sem batom. E se o copo estiver com ela no quarto? Não tem problema, ela é da casa. E se ela estiver no quarto, provavelmente estará de pijamas, como de costume. Não tem muito saco de bancar o detetive.
Ela já a viu dormindo. Ali e em outros lugares. Dorme de lado, quase sempre sobre o braço. Sempre de pijamas, mania dos dois. Quer dizer, sempre que a viu dormindo, Pedro Paulo estava por perto. Ele e seus pijamas. Ela mantém o pé coberto pelo lençol, cobertor, ou por meias. Brancas, pretas, listradas, com bichinhos, estrelas, uma festa. Bela, cabelos espalhados pelo lençol. Ele pensa que a maioria das mulheres é bonita dormindo. Estiradas nas camas, em diversas posições, rostos suaves, pálpebras pesadas de sonhos, alguns sorrisos nos lábios, mas sempre calados. O pesadelo é depois, quando acordam, lavam os rostos e começam a falar. Dá vontade de fugir. Ele foge, sempre que pode. Ou melhor, evita acordar com elas. Melhor prevenir do que remediar. Pegar uma delas na pracinha, no começo da manhã, e despachar na hora do almoço. A glória!
Ele abre a porta do quarto com cuidado e, na penumbra, dá com a triste figura do amigo, de pijamas, dormindo sentado, imerso em um mar de papéis amassados, com outro pijama enrolado no pescoço. O dela, provavelmente, Ele olha em volta à procura de Adriana. Só mais papel amassado jogado no chão. Será que a história do anel deu errada? Curioso, pega um deles, desamassa-o e lê o que parece um começo de carta para Adriana: "Meu amor, por onde andas tu?" Gonçalves fica horrorizado com a letra e os dizeres. Pega outra folha: "Volta!! Não sou ninguém sem você! Preciso tanto!" Mais uma: "Não sei onde errei, o que fiz, mas lhe peço desculpas antecipadas....". Ele conta e acha quarenta e três folhas amassadas.
Gonçalves fica estupefato. Com o amigo, com a sua letra, com as palavras, tudo. O que será que houve entre os dois? De onde o amigo tirou aquelas frases horrorosas? Ela rejeitou o anel? Pegou ele com outra? Descobriu o caso da Carla? Que será que houve? Aqueles bilhetes são desespero puro! Ficou com dó do amigo. O pijama de Adriana amarrado no pescoço é o sinal de que a coisa é grave. Ele se pergunta sobre o que pode fazer pelo amigo. Talvez ajudar a escrever cartas?
Está surpreso com a situação. Lembra que perguntou a Pedro Paulo, na segunda-feira, sobre o anel e ele respondera que estava tudo bem. Depois não falara mais com o amigo, desencontro natural em São Paulo. Não, conversou com ele ontem pela manhã. Ou melhor, ele falara, nem sabe se o outro escutara, estava morto de sono. Será que ontem já tinha brigado com ela? Brigaram? Pelas cartas parece que houve um desencontro entre eles e não propriamente uma briga. Ele pede que ela volte. Pergunta onde ela está. Então o desencontro é físico. Ela não deve ter aparecido no lugar marcado. Mas por que ele está escrevendo cartas ao invés de telefonar-lhe? Ficam grudados no celular o dia todo! Por que ele não vai à casa dela? Ou no seu trabalho? Com aquelas cartas é que não vai chegar a lugar nenhum. Será que ela não voltou de Avaré?
O despertador tocou. Ele vê o amigo se assustar com o som repentino. Quase cai da cama com o movimento repentino. Pedro Paulo abre os olhos lentamente e vê Gonçalves.
- Que aconteceu?
- Hora de acordar, princesa.
- ei. Por que você está olhando para mim
- A zona na cozinha!!
O outro pisca os olhos, tenta se localizar no tempo-espaço. Gonçalves fica com pena do amigo. Desliga o despertador, diz que não houve nada, acomoda-o na cama e manda-o dormir mais um pouco, até chegar o pão e o leite. Pedro Paulo atende docemente às ordens do amigo, vira para a parede e cobre-se com o lençol. E sonha. E pensa. Ou pensa que sonha. Ou sonha que pensa. Está entregue.
Ele revê o sorriso que ela lhe deu ao vê-lo na estação do Metrô. Um sorrisão. Um sorrisaço! Com certeza estava contente, satisfeita em encontrá-lo ali. Sentimento recíproco. Ele lembra como se ocorresse agora: ela se aproximando, chegando, um beijinho tímido na ponta do seu nariz – deu para sentir seu gostoso perfume – sua voz maviosa dizendo que ia comprar bilhetes, seu rodopio rápido e a caminhada rumo à bilheteria ......
A última imagem que ele teve dela naquela semana: suas costas se afastando, a mão puxando a grande mala preta, os cabelos balançando a cada passo, a saia florida farfalhando ......
Depois, nada. Um imenso nada, um nada se expandindo, preenchendo tudo. Nada. Nada. Nem uma imagem, um cheiro, uma palavra. Puf, desapareceu no ar. Como se nunca tivesse existido. Agora um cartão postal, notícia velha. Poderia estar morta e o cartão iria chegar do mesmo jeito. Palavras de uma morta, sentimentos de uma defunta. De que lhe serve um cartão postal, enviado por quem lhe deu as costas e puf, sumiu? Morreu? Não, isso também é notícia velha.
Ela está viva. Bem viva e trabalhando. A mãe garante, a secretária da empresa dela também. Está em Alphaville, afirmam as duas. Será que as três estão combinadas? Escondendo Adriana? Pode ser. Mas, se ela está viva, trabalhando, por que não liga para ele? Ou atende o celular? O que será que aconteceu? Ela não gosta mais dele? Não, não é isso, aquele sorrisaço desmente tudo isso. Mas onde ela está agora? Por que ela não liga para ele nem atende ao celular? Tantos dias sem vê-la. Dois sábados, dois domingos, duas segundas, duas terças, e serão duas quartas, se não a encontrar ainda hoje .....
Gonçalves sacode Pedro Paulo: "Ô vagal, vais trabalhar hoje?" Ele, novamente, toma o maior susto com a mão do amigo. Abre um olho, solta um monte de impropérios, boceja.
- Tava sonhando tão bem.
- És uma bela adormecida mesmo. Se ficar dormindo mais, vai ter que beijar o príncipe. Você não vai trabalhar?
- Vou, né?
- Então está na hora. Ou melhor, para mim já passou da hora. Deixei pão, leite e café. Vê se arruma a cozinha antes de sair.
- Cozinha?
- Esqueceu da bagunça que você fez?
- Eu arrumo. É que fiquei com fome.
- E esse monte de papel amassado? Estava escrevendo cartas para a Adriana?
Pedro Paulo acorda definitivamente. Vê os papéis amassados. Se ele fosse poeta diria que são estrelas no negro céu de ....
- São estrelas no céu negro antes da tempestade .....
- Pára com a bobagem, acorde!! Não esqueça a cozinha. E melhore a letra. Fui.
Pedro Paulo olha ao redor. Realmente o quarto está um lixo. Ele tenta se levantar, a cabeça dói. Não deveria ter bebido tanto ontem. Já é o segundo porre nessa semana. Ou será o terceiro? Culpa dela, Adriana. Para ser sincero, ontem a culpa foi da outra, Carla. Ou melhor, é de Adriana mesmo. Se não fosse seu sumiço, não teria encontrado a outra e não beberia como um louco. Mas se não bebesse, não teria aquele sonho bom. Que lucro besta. Preferia Adriana ali do seu lado. A boca seca. Ele olha ao redor e pela luminosidade do quarto verifica que é hora de ir trabalhar. Trabalhar? A melhor coisa para esquecê-la, ou melhor, sua fuga. Não sabe onde ela está, nem onde procurá-la. Fazer o quê, então? Melhor ocupar a cabeça e esperar ela ligar, igual a ontem.
Não! Ele se lembra que tem o telefone do escritório. Conversou com a mãe, com a colega de trabalho. Aos poucos, as lembranças do dia anterior vão aparecendo. O cartão postal. A tentativa de escrever uma carta para ela. Carla no bar. A decisão tomada no Metrô de que iria hoje no escritório dela. O convite da mãe para ir sábado na casa delas. Será feijoada ou churrasco? Não lembra. Sabe que não tem o endereço da mãe. Nem o telefone. No escritório será capaz de descobrir tudo. Como esqueceu que tinha de ir hoje para a Saúde? "De Paula". Parece que é o seu sobrenome verdadeiro. Só "de Paula" ou tem também o "Pimenta" que conhece tão bem? Que carro ela teria? Que outros mistérios ela guardaria?
Imerge nos seus pensamentos. Tempos depois, com muito esforço, a cabeça ainda latejando, levanta-se da cama, toma banho e arruma o banheiro. Deixa tudo impecável. A faxineira só virá na sexta-feira, não quer escutar o amigo reclamando até lá. No quarto recolhe "as folhas da relva". Sorri consigo mesmo ao lembrar do título do livro do Whitmam. Está inspirado hoje, reconhece. Quase um poeta. Será o amor? Primeiro as "estrelas no céu negro antes da tempestade", agora as "folhas da relva". Na verdade, não conseguiu escrever uma carta que prestasse, que expressasse seus sentimentos. Que raios de poeta era ele? Abre uma das folhas amassadas, tem vergonha do que lê. Mais uma, igual reação. Devia estar bêbado para escrever tanta baboseira. Amassa todas elas numa enorme bola de papel. Tem vontade de jogar pela janela, mas as pessoas no ponto do ônibus podem ver e será pior. Joga no cesto de lixo do quarto.
Veste-se, escolhe uma roupa bonita, discreta, que lhe venda bem. Irá ao escritório dela, não pode deixá-la com vergonha dele. Pega os sapatos novos, bem engraxados, a boa impressão começa pelos pés, como seu pai costuma dizer. E acaba nos cabelos, diz sua mãe. Olha-se no espelho, se fosse uma mulher dava para ele. Sorri, esse é o tipo de poesia que gosta. Procura o celular e não acha. Pega sua carteira, os bilhetes do Metrô e o precioso papel com o número do escritório. Onde deixou o celular? Lembra que decidiu ir com o anel lá no escritório. Agora está inseguro. Quantas pessoas encontrará? Ela terá uma sala só para si? Abre o guarda-roupa. A caixinha de veludo está na prateleira do meio, na frente das camisetas. Ele a abre, aprecia a jóia, passa a toalha sobre a pedra, gesto repetido vários vezes nesses dias, e diz para si mesmo que ela vai adorar. Mas entregá-la no escritório, na frente dos outros? E se ela não estiver lá? Um perigo viajar no Metrô, de um lado para o outro, com o anel no bolso. Melhor deixar para outra ocasião, ter certeza de encontrá-la. Guarda a caixinha no fundo do armário, sob as camisetas, onde ninguém mexe.
Cadê o celular? Na cozinha, com certeza. A cortina da sala está aberta: céu azul, sol forte, a pracinha repleta de carrinhos de bebê. Novamente perdeu a hora, constata. Não importa, ele vai mesmo é para a Saúde!
Café, leite, pão fresquíssimo – esse Gonçalves vale ouro, não pode deixá-lo ir embora. Seria bom morar os três juntos. Se ela aceitar, é claro. Ou ele. Arruma a cozinha. Lava a louça, dá um trato no grill. Joga o lixo fora, sua tarefa matinal. Recolhe as cartas. Abre-as, a maioria não presta, direto para o lixo. Separa as contas. Uma carta sem remetente. Propaganda? Seu nome à máquina. Que coisa esquisita. Uma segunda chance para a carta? Sim, está curioso. Deixa-a junto com as contas, para ler na volta. No fundo, no fundo, o amigo tem razão: correspondência inútil. Onde estará seu celular? Tenta se lembrar onde poderia estar. Lembra que foi na área. Procura, mas só acha roupa suja. Vasculha os bolsos e nada. Onde teria usado o celular pela última vez? No bar, com certeza. Uma ligação não identificada. E depois? Recorda-se que viu a hora no celular quando saiu do Metrô. Deve estar em casa. Ou perdeu entre a estação e o prédio. A pracinha. Talvez.
Ele dá uma nova batida na casa e nada do celular. Devia estar bêbado na noite passada. Colocou não sabe aonde. Não importa agora, ela não vai ligar mesmo. De noite pedirá para o Gonçalves ligar para ele, pela campainha achará seu aparelho. O importante agora é o número do escritório anotado no papel que está no bolso da camisa. Pode ligar do orelhão. Para o escritório dele e para o dela. Vamos lá, ação!
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