quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Orgulho e preconceito



- O senhor é aposentado?


Fico indignado com o rapaz magrelo e imberbe que distribui as senhas. Quem ele pensa que é? A mulher do mel acabou de chamar-me de mocinho (leia aqui). Como ser aposentado? Refuto com energia:


- Não!!!!


O rapazinho olha-me indiferente como se pensasse "orgulho besta, não quer ser aposentado, azar o dele" e pergunta-me quantas contas eu vou pagar.


- Uma só, falo, exibindo-a.


Ele, com enfado, aperta alguns botões e a máquina cospe a senha: "xft546 – normal". Ele entrega-a para mim e grita "próximo!"


Pego o papelucho e pergunto-lhe para onde ir. Escadas à direita e à esquerda, um longo corredor no meio. Ele respira fundo, "esse não é aposentado, mas retardado", e responde devagar olhando para o senhor que está na fila atrás de mim:


- O senhor segue em frente e entra na porta à direita.
- Que porta?
- Ali, à direita. Pode ir. Próximo!


Sigo em frente antes que um cliente impaciente, normal ou não, agrida-me. No meio do corredor surge a porta e por ela vislumbro o inferno: um salão apinhado de gente. Uma lufada quente de corpos humanos vem lamber meu rosto. Recuo enojado. Sigo até o final do corredor, esperando que o rapaz esteja errado. Lá só os gerentes das "jurídicas". Não, eu é que estou errado. Volto até a fatídica porta e entro devagar, prendendo a respiração.


Um salão enorme, com uns doze, quinze guichês de atendimento, alinhados contra a parede das únicas janelas do lugar. No meio da área cerca de uma centena de cadeira, todas ocupadas. Outras tantas quinhentas pessoas espalhadas pelo local, encostadas nas paredes, sentadas no chão, em pé de braços cruzados, etc. Todas com a senha na mão.


A máquina indicativa de atendimento deixa todos nervosos, pois sua campainha não para de tocar anunciando a senha e o guichê. A fila, entretanto, não anda, pois muitos estão distraídos conversando, outros dormindo (a espera é longa), alguns não entendem o que está ocorrendo, sem falar naqueles que têm dificuldade de locomoção (idosos, deficientes, grávidas, mulheres com crianças) e que não conseguem passar pelas cadeiras para chegar no guichê a tempo de evitar perder a vez. Reclamações gerais, dois idosos disputando o mesmo guichê, um deficiente apoiado nas suas muletas, em pé diante da máquina, oscilando perigosamente, crianças correndo, outra engatinhando no carpete imundo, etc., um verdadeiro pátio dos milagres.


Percebo que minha vez vai demorar muito para chegar. Penso em dar uma volta pela rua e retornar mais tarde, mas a lembrança da fila da porta giratória com detector de metais desanima-me. ora são motoboys tentando entrar com capacete, mochila, chaves e botas enfezadas, ora são mulheres que insistem em passar com bolsas enormes. A porta trava, elas voltam, esvaziam alguma coisa, tentam novamente, e assim indefinidamente, até que alguém as convença a deixar a bolsa no armário da entrada. Melhor tentar descolar um pedaço de parede e esperar. Deve ser rápido, muitos caixas operando.


Estou bem de frente para a desesperada e irritante máquina. Noto que não quase não aparecem as senhas dos "normais". Concluo que entrei numa "roubada"! Para passar o tempo, caminho de um lado a outro do salão, olhando com atenção as faces desoladas dos clientes com a demora do atendimento. Alguns mostram fome nos rostos, pois foram sem almoçar, pensando em fazê-lo depois. Neste aspecto estou bonito, o estômago dá sinais de satisfação com a gororoba engolida. Também estou feliz por não ter ao meu lado uma(s) criança(s) entediada(s) ou precisar ir ao banheiro a cada minuto como as duas grávidas e o tiozinho de calça marrom.


Numa dessas idas e vindas pelo salão alcanço a porta de saída, isto é, se eu conseguir pagar a conta ainda hoje. Vejo que o operador da máquina de senhas mudou, agora é uma mulher. Tenho sorte com elas, desperto o seu instinto maternal. Decido arriscar e tentar obter uma senha especial, de aposentado, que me levará direto para o paraíso. Coloco minha normalíssima senha no bolso, despenteio os cabelos para melhor exibir os escassos fios prateados, desalinho a camisa para tomar um ar de parvo. A cara já está achuchuzada (ou maracujada) naturalmente. Caminho lentamente pelo corredor, forjando uma certa dificuldade de locomoção. A atendente é uma estagiária bem novinha. Se antes tivera vergonha de mentir para o rapaz, agora é que não terei coragem de fazer valer minha condição de pseudo-aposentado. Resolvo apostar no erro da avaliação dela, como aconteceu com o rapaz. Faço uma cara de sofredor envelhecido e pergunto-lhe insinuando estar completamente desorientado:


- É aqui que retiro a senha para o caixa?


A mocinha olha para mim sem dó nenhuma e pergunta logo quantas contas eu tenho. Sentimentos contraditórios invadem-me: alegria por não ser considerado um idoso ou aposentado, tristeza por saber que isso significará mais algumas horas de fila.


- Umazinha só.
- Normal, diz apertando os botões da máquina e entregando-me novo papelucho.


Resignado, recomponho-me, para surpresa da mocinha e caminho sereno para o cadafalso. As duas senhas no meu bolso gritam para mim: você é normal! Normal!


Conclusão do meu orgulho e preconceito: duas horas e alguns minutos de fila na antesala do inferno!!



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2 comentários:

Anônimo disse...

Ainda bem que não era eu o caixa, pois você não teria a mínima chance de passar por aposentado.

Play Boy – Surfista – Carioca, Funcionário Publico, Empresário, Dono de alguma coisa talvez, mas aposentado jamais.

Digo mais, você vai ter que provar sempre que é APOSENTADO, pois as regalias desta condição não fazem parte de sua fisionomia.

VAI PRO FIM DA FILA MEU AMIGO MARATONISTA

S.

Metamorfose Ambulante disse...

Maldade sua, ando tão caído, não vejo a hora de encostar no INSS!

Já pegou sua medalha da São Silvestre? Agora não precisa suar!!

Frid