quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

A pequena guia


As duas sobem a íngreme Miguel Couto. A menininha, que lembra a petiz Maísa dos velhos tempos de Sílvio Santos, ofega a cada passo, com o pequeno corpo dobrado pelo esforço. Não sei de onde vêm, mas parece ser uma longa caminhada para as suas perninhas. Ela segura a mão da mãe ereta que, apesar de não enxergar, certamente comanda o passeio, pois a filha não tem idade para saber o caminho. A menina seria muito útil se avisasse à mãe sobre os buracos, postes, pessoas e outros obstáculos, mas a cabecinha dela está em outro lugar, num desenho animado, numa estória, numa guloseima. numa canção, que parece cantarolar baixinho. 

Chegam à esquina com a São Bento. A mãe segura firme a mão da menina com a sua mão esquerda, e com a direita a bengala branca, fazendo o gesto característico de perscrutar o caminho. As pessoas aos poucos abrem espaço para as duas passarem. Parece que elas pretendem cruzar a São Bento e alcançar o Largo do Café. Estão já no meio da movimentada rua de pedestre quando a menina puxa a mãe:

- Mãe, churros!
- Quê, minha filha?, diz a mãe muito atenta aos obstáculos e aos transeuntes.
- Churros, mãe. Ali. Tô com fome.
- Temos que ir.
- Quero churros, berra a menina puxando firma a mão da mãe.

Os churros, que parecem de anteontem, estão numa pequena vitrine sob a máquina de sorvete cremoso. Ao lado, enorme vitrine de doces variados. Um cartaz vermelho com letras amarelas anuncia a doce e gordurosa iguaria, mas as duas não têm condições de lê-lo. Só o olhar guloso da menininha para encontrá-los ali no cantinho da loja.  

A mãe não consegue controlar a situação, deixa-se levar pela criança. Seguem lentamente em direção à loja, a mãe tateando o novo caminho. A bengala esbarra em algo desconhecido e ela para repentinamente. Que será? Ela nunca conseguirá entender o exótico obstáculo: um balde d'água no meio do calçadão!

A máquina de sorvete vazou para a calçada uma maçaroca gordurosa, onde os pedestres patinam e reclamam com asco. Um empregado tenta limpar a calçada, jogando água e puxando com um rodo a mistura para o bueiro mais perto.

A menina, vidrada nos churros, não dá atenção a esses detalhes e prossegue sua marcha em direção à vitrine, arrastando a mãe. Esta não vê o sorvete tricolor derramado no chão, aquela é indiferente a ele, importa-lhe só os churros.

- Senhora, cuidado com a poça!

É tarde, os sapatos das duas e a bengala já foram conspurcadas pela massa gosmenta. O rapaz para seu trabalho e pergunta o que elas desejam.

- A menina quer churros.
- Um real cada um, madame.
- Tá fresco?
- De hoje, madame. Veja que beleza!
- Dê um para a menina.

As duas saem. A mãe procurando retomar seu caminho para o Largo do Café, a menina lambuzando-se com o churro, um sorriso enorme mostrando os dentinhos manchados de doce de leite. Os sapatos borrados de mescla de branco, marrom e rosa vão deixando marcas na calçada. Tudo normal ... até algo atrair a atenção da pequenina guia.


José FRID

Clique  e leia sobre "Almoço com o pai" na mesma região de São Paulo

Clique aqui e leia sobre o "lost son" (filho perdido)!

3 comentários:

Anônimo disse...

agradeço o envio.

excelente crônica.

abraços,

Ervin

Anônimo disse...

Frid

Lendo seu "conto" envolvendo crianças - surpreendentes, claro - me lembrei de uma "ótima passagem" que o mario prata relatou numa entrevista na tv com o jô soares, e que ele havia publicado em um de seus livros, baseado em depoimentos de amigos.
simplificando, é o seguinte: a mãe trouxe a garotinha de 5, 6 anos para acompanhá-la às compras na rua 25 de março.
no turbilhão de pernas, braços, gritos, cheiros, empurrões e puxões, pacotes, enfim, de gente pra todo o lado... a pequena puxou a saia da mãe e lascou a pergunta:
- mãe... aqui é "o puta que o pariu"?
isso.
bjs.

Eneida

Metamorfose Ambulante disse...

Ótima!!! A garotinha sabia das coisas!!!

Um abraço

FRID