sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Um homem extraordinário e outros contos - Tchekhov



Tchekhov é considerado um dos mestres do conto moderno, estórias curtas, que praticou com maestria, em abundância e criando  uma vertente nova de contos de atmosfera. Entretanto, a abundância não permite manter sempre o padrão de qualidade. Neste livro ocorre isso, com alguns contos magníficos, outros muito bons, alguns medianos e alguns poucos que deixam a desejar. (Está claro que essa classificação é absolutamente pessoal, principalmente com relação a essas duas últimas categorias. Os contos magníficos têm a unanimidade dos leitores)

O livro apresenta uma coletânea de dezoito contos, selecionados e traduzidos por Tatiana Belinsky, muito desiguais entre si, fazendo uma amostra não muito favorável da produção do autor. Na minha avaliação, dos dezoito contos só cinco se destacam, sendo dois com temática adulta ("Em casa" e "O relato do jardineiro-chefe"), dois sobre animais ("Testa branca" e "Cachtánca") e um sobre crianças ("Criançada"), nos quais Tchekhov mostrou toda sua maestria ao trabalhar com o ponto de vista de crianças e animais. Vejo a influência do trabalho de tradutora na seleção dos contos, ela que é autora de mais de cem livros infanto-juvenis. Assim, leia primeiro esses cinco contos, você vai se deliciar com eles. Os temas são bons e a maestria na escrita impressiona!

Anton Tchekhov é um mestre da arte de extrair do cotidiano as coisas simples e construir belíssimas obras de arte, tendo maestria ao usar as palavras, grande habilidade em construir descrições atentas e cuidadosas, encantamento e carinho ao esculpir cada frase, com muita sensibilidade em relação à vida humana, na sagacidade, perspicácia e talento literário em enxergar o outro, em curar ou revelar as dores da alma, em fazer a investigação psicológica densa e, ao mesmo tempo, singela.

"Desgraça alheia", "Pavores", "Champanha - Relato de um velhaco", "Velhice", "O homem no estojo", "Um homem extraordinário", "No asilo para velhos e doentes incuráveis", "História desagradável" e  "Amor de peixe" são contos medianos, que nada acrescentam à obra de Tchekhov, principalmente pelos temas escolhidos.

"Trapaceiros à força - Historinha de Ano Novo" e "Uma filha de Albion" têm umas estorinhas simplórias, bobinhas, apesar de bem escritas. Não são o melhor do mestre do conto.

Dois contos envelheceram mal, para dizer o mínimo, passando hoje a mero registros da época em que foram escritos: "O sapateiro e a força maligna" e "Um dia no campo- Ceninha". Leia-os só se tiver muito tempo vago.

O primeiro conto do livro é "Desgraça alheia" registra a visita de um casal a uma propriedade rural que está sendo leiloada pelo banco por falta de pagamento dos juros da hipoteca. Enquanto o casal está animado e cheio de sonhos de mudanças na propriedade, os antigos proprietários sofrem com o despejo iminente.

"O sapateiro e a força maligna"  conta a estória de um sapateiro, às vésperas do Natal, insatisfeito com sua vida dura, sonha que pede ao diabo, seu cliente, virar um homem rico em troca de sua alma. O diabo atende seu pedido e ele experimenta a vida de rico, com as preocupações típicas dessa classe social. Desperta do sonho sem inveja dos ricos, pois todos vão morrer. Acho que o autor perdeu a mão, não soube fechar o conto, apelando para um fim demagógico.

"Um dia no campo - Ceninha" mostra exatamente isso, crianças pobres no campo tendo um incidente bobo. 

"Em casa" é um ótimo conto e atual, isto é, a situação nele retratada poderia ter acontecido hoje. Versa sobre um pai viúvo que tem que educar seu filho de sete anos, que fuma escondido os cigarros do pai. Ele quer educar e não simplesmente reprimir e castigar o filho, quer convencê-lo a não fazer mais isso. Conta uma estória de um rei que perdeu o castelo porque o filho fumava e morreu disso, permitindo aos inimigos tomarem o reino. Conto muito bem escrito, vale a leitura. (Constatação já naqueles tempos, segunda metade do século dezenove, já se conhecia os malefícios do cigarro).

"Pavores" narra três grandes situações, para o narrador, de medo, pavor. Entretanto, são situações tão bobas, tão "medinhos", que não conseguimos compartilhar esses temores: uma luz na torre da igreja, um vagão em movimento, um cão branco e manso (!).

"Champanha - relato de um velhaco" conta o infortúnio de um chefe de estação de trem perdida no meio do nada na Rússia, na noite de Ano Novo, quando deixa a garrafa de champanha cair no chão - não quebrou - , mal presságio para a mulher dele.  Chega de surpresa uma tia da sua mulher, gostosona e recém separada, e ... isso mesmo, o autor nada conta! Tão subentendido que o conto perde o interesse. O interessante no conto é verificar-se que a champanha em questão era uma "Veuve Clicquot", presente no fundão da Rússia em meados do século dezenove! Isso é que é prestígio. Uma frase cabe destacar: "que mal ainda se pode causar ao peixe que já está pescado, frito e servido à mesa, ao molho?", pergunta o narrador. Como se houvesse situação definitiva para o mal, que não pudesse piorar.

"Velhice" mostra dois senhores - um arquiteto e um advogado - recordando fatos antigos ocorridos com os dois, o divórcio do arquiteto feito pelo advogado, e os mal feitos desse tomando o dinheiro da ex-mulher do outro. 

"O homem no estojo" conta a estória de um homem muito reservado, professor de um ginásio, que se preserva muito, sempre de casaco, guarda-chuva e galochas, não revela seus sentimentos e que gosta de proibições - elas são sempre precisas, o que lhe dá mais segurança de agir certo. Arranjam uma noiva para ele, mas ela anda de bicicleta, o que ele acha ilegal e termina tudo, morrendo de desgosto. Estojo = caixão. A ideia do conto era boa, mas algo se perdeu na escrita e a gente não se liga nos personagens.

"Um homem extraordinário", conto que dá título ao livro, apresenta um homem difícil de conviver, que quer tudo certinho, é pão-duro, honesto, econômico - quer que o filho reflita que a comida não é de graça exatamente na hora de comê-la, reclama da mulher por ter mais um filho, outra boca para sustentar, etc. - , tudo ao máximo, irritando a todos. Uma prestadora de serviço desiste de cobrar seus honorários só para não ter que conversar com o homem outra vez.

"No asilo para velhos e doentes incuráveis" uma mãe leva a filha para visitar o avô, seu sogro, para arrancar dinheiro do velho, pois seu marido e pai da menina só toca piano nos bares e bebe muito, estando doente agora. A criança fica assustada com a cara e o comportamento do avô: "velho, corcunda, cheia a tabaco, boca aberta desdentada, sorriso igual a uma verruga".

"História desagradável" narra uma visita de um homem à amante na casa dela, mas é surpreendido com a presença do marido, caixeiro- viajante que retornara de uma viagem negócios  à França. O autor enrola, enrola e pouco acontece. Desagradável para o leitor! (Será que esse marido foi o que trouxe as champanhas do outro conto?)

"O relato do jardineiro-chefe", um excelente conto,  mostra um julgamento criminal "suis generis". Um médico boníssimo, um sábio, quase um monge, é encontrado morto, aparentando assassinato (cabeça quebrada, face crispada, etc.). Ninguém acredita que ele possa ter sido assassinado, apesar dos indícios, por não acreditarem que poderia passar pela cabeça de alguém a intenção de matá-lo. Mais não conto para não revelar o segredo. Leia-o aqui!!

"Trapaceiros à força - historinha de Ano Novo" narra a boba estória de pessoas mexendo no tempo - representado por um relógio de ponteiros - conforme suas conveniências, ora adiantando, ora atrasando os ponteiros. E nós com isso??

"Amor de peixe" mostra um peixe apaixonado por uma mulher, que ele beijava os pés, os ombros, o pescoço, etc., quando ela ia tomar banho na lagoa onde ele morava. Como ele não era correspondido (!), ficou pessimista e tentou morrer na mão dela quando ela pescava. O "suicídio" não dá certo. Ele depois beija um poeta que tomava banho na lagoa, transmitindo seu pessimismo para ele, que contagiou os demais poetas da Russía. E...???

"Uma filha de Albion" traz uma pescaria na qual participa uma governanta inglesa que não se assusta quando o patrão fica pelado para soltar o anzol enganchado numa pedra debaixo d'água.

"Testa branca" é um ótimo conto sobre os percalços de uma velha raposa, com três filhotes, para arranjar comida. Acaba se envolvendo com um cãozinho ao tentar pegar ovelhas em uma fazenda. Muito bem escrito.

"Criançada"  narra uma deliciosa cena entre crianças jogando loto a dinheiro. Uma descrição exata, precisa, com pulso do comportamento e reações de cada criança conforme a sua idade. Bela observação de crianças e adolescentes.

"Cachtánca" fecha com louvor o livro ao contar a estória de uma cadela vira-lata que se perde do seu dono - que lhe dava vida dura - e é adotada por um homem que faz espetáculos de circo com animais - ganso, gato e porco! Ela ensaia também e quando estreia é encontrada pelo antigo dono. Domínio total da escrita, tornando um tema simples num belíssimo texto, Vale muito a leitura!


Anton Tchékhov in "Um Homem extraordinário e outras histórias" - L&PM Pocket, vol. 645, julho de 2013.

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