Um dia alguém sentiu a necessidade de comprar um sofá. Poderia ser a aquisição do primeiro sofá para a casa onde moraria sozinho(a) pela primeira vez. Ou, quem sabe, um sofá novo para substituir um velho cansado de guerra, com molas expostas, forro esgarçado, que já tinha dado tudo o que podia dar.
Ou um casal, dois pombinhos, atrás da mobília do ninho de amor. Talvez os pais à procura de sofá novo para substituir aquele que os filhos detonaram. Um (uma) descasado(a) ou viúvo(a) querendo trocar o sofá que traz tantas lembranças boas, ruins. Ou alguém, simplesmente, procurando uma peça que combine com a nova decoração.
Não importa o motivo: eles foram às lojas, procuraram, escolheram, mediram para ver se cabia no espaço disponível, apreçaram para sentir se o bolso suportava. Eis que, num bonito dia (esses dias são sempre bonitos) aparece o sofá novo, o rei da sala. Instalado de frente para a televisão, essa sim a máxima majestade do ambiente.
Forro bege estampado com grandes flores coloridas, detalhes em madeira avermelhada, acompanhando desenho do assento e dos braços redondos e gordos. Dois lugares, espaldar alto. Em resumo, uma gostosura para sentar, só ou acompanhado, recostar, namorar, cochilar e até deitar. Todos queriam usá-lo, brigavam por ele. Chamavam-no de seu, deitavam e rolavam sobre ele. Uma vez ou outra deixavam cair líquidos sobre ele, que resistia firme, protegido pelo selante espargido nele, ainda na loja. Só uma reclamação dos usuários: seu apetite insaciável por moedas e pelo controle remoto!
Durante anos, o belo sofá esteve ali firme, recebendo a todos sem preconceito. Magros, gordos, altos, baixos, novos ou velhos. Mas o tempo passa e com ele caminhamos todos juntos, sem parar (musiquinha grudenta, não?). Por um motivo ou outro (sejam aqueles citados acima ou outro que você imaginar), seus proprietários voltaram a visitar lojas, medir, apreçar e amanhã será um bonito dia....
É chegada a hora da despedida, precisam abrir espaço para o novo rei do pedaço, o antigo queridinho da casa agora é um estorvo. Que fazer com ele? Jogar na lixeira? Deixar na calçada e fugir? Dar para o porteiro? (Naquele estado? Não, que vergonha!) Doar para as Casas André Luis? Chamam a Kombi da esquina e pagam para dar sumiço no móvel com dignidade, "mas tem que ser agora!"
"Doutor, não se preocupe, levaremos para o depósito da prefeitura". A despedida é na porta do elevador. Não têm coragem de acompanhá-lo até o veículo. Ao chegar na calçada, o ajudante pergunta ao condutor se o depósito municipal está aberto à noite. "As ruas são da prefeitura, o depósito é por aí. Você acha que vou gastar gasolina com sofá velho?"
O sofá está acomodado na Kombi. Com o dinheiro que ganharam, os dois vão jantar no bar da esquina. Quem vai roubar um sofá velho? Um pouco de televisão, futebol, umas cervejas, as ruas já estão vazias. Motor ligado, a Kombi desce a avenida devagar, olhos atentos para encontrar um lugar para despachar a encomenda. Param atrás de um ônibus que pega passageiros. O coletivo parte, mas a Kombi não. O motor morreu e não pega nem com reza braba. O motorista abre a tampa do motor. Precisa pegar uma ferramenta. Tiram o sofá e o acomodam entre as pilastras, bem embaixo do telhadinho. Coube justinho, parece que foi feito de encomenda para aquele ponto de ônibus.
- Vocês vão deixar o sofá aqui no ponto??? Vou chamar a polícia!
- Mandaram deixar aqui.
- Quem mandou?
- A companhia de ônibus.
- Qual? A Sptrans?
- É essa mesmo.
- Mas assim rasgado?
- Só a almofada. Disseram que vão trocar amanhã.
Outro ônibus chega e leva o passageiro reclamão. Os dois não esperam. Soltam o freio de mão e deixam a Kombi descer a avenida na banguela, para bem longe do sofá.
Ele fica ali, apreciando a avenida, protegido do sereno. Aparecem alunos da escola próxima. Os ônibus estão demorando. Olham para o sofá, mas não querem enfrentar aquelas almofadas rasgadas. Até que um mais inventivo resolve colocar a mochila no sofá e sentar por cima dela. Logo o sofá encontra sua utilidade inicial. As escolas fecham, os alunos partem e o sofá fica abandonado na madrugada.
O dia todo ninguém teve coragem de sentar. Mil motivos. Sujo? Pulgas? Vai afundar? Molhado? Na verdade, os ônibus não demoram o suficiente para incentivar o uso do sofá. Cai a noite. Uma "Amy Winehouse" de pela morena, mais velha, porém com a mesma saúde, desce a avenida, vinda dos lados do Metrô. Arrasta um grande saco, todos os seus bens. Está cansada de trabalhar nas ruas o dia todo. Os pés estão doendo de tanto caminhar. Eis que surge um oásis na sua frente: um sofá!
Os passageiros se afastam dela, abrem espaço para ela sentar no sofá. Experimenta, há muito tempo não descansara em algo tão macio. Recosta-se. Cruza as pernas Deixa-se apreciar o movimento da avenida. O vai e vem dos veículos, de um lado as luzes brancas, de outro as vermelhas. O sobe e desce dos passageiros, sempre apressados.
Que sorte a dela ter chegado antes de outro andarilho. Ela vira as almofadas rasgadas, o lado de baixo está novinho! Dá vontade de levar o móvel para casa, mas como arrastá-lo até lá? E que casa? O cantinho ao lado da igreja? A casa é aqui, agora. E tão perto do Metrô! Vasculha o saco e tira um surrado cobertor. Amontoa algumas roupas como travesseiro, deita-se, o corpo franzino se amolda perfeitamente aos dois lugares. Boa noite.
Manhã cedinho, ela já se levantou, está sentada apreciando o dia, um copo plástico na mão, pose de quem degusta um drinque ou um capuccino. As coisas arrumadas no saco, os cabelos presos à "Amy Winehouse", ela está pronta para ganhar o pão de cada dia.
Mal cai a noite, ela está de volta, não pode demorar-se, o sofá é motivo de cobiça, precisa zelar pelo seu pedaço. Os passageiros a ignoram, ela a eles também. O sofá está todo cheio de si, novamente querido. Ela cobre-o com seus panos, trata-lhe com cuidado. Ele a acolhe com carinho. Não tem diante de si uma televisão, mas a vida real, ao vivo e a cores. Só sente falta de engolir umas moedas.
Naquela semana, os dias quentes e as noites cálidas desse veranico de julho são bem agradáveis à bordo da nave florida. Dois vasos de plantas mirradas ladeiam as pilastras do ponto de ônibus. Restos da feira dali pertinho. Confiante, ela já deixa algumas peças de roupa sob as almofadas, alguns pertences atrás do encosto. Sente-se rica, como nunca se sentiu na vida.
Chega agosto e com ele as chuvas tão esperadas pelos paulistanos. Manhã de domingo. O mundo cai. Ela se encolhe toda no sofá, cobre-se com um carpete velho, saído do saco mágico. O vento gelado cruza o ponto de ônibus, mas ambos resistem com brio. A chuva que corre pela calçada passa por baixo dos pés do sofá, sem afetá-los. Nada a fará sair do seu querido sofá. Almoça um pacote de biscoito. À noite um porteiro trouxe-lhe um café do bar próximo. Alguns passageiros condoídos lhe dão moedas, que esconde sob as almofadas, para satisfação do sofá, dieta suspensa..
Segunda. A semana promete ser fria e chuvosa. Tem que sair para garimpar nas ruas. É com coração apertado que abandona o fofo e quente companheiro. Uns sacos plásticos pretos lhes protegem da chuva. Passa o dia na labuta. À noite retorna ao seu porto seguro.
Quarta-feira. Depois de zanzar muito pelo bairro, com chuva, vento e frio, ela aponta lá no alto da avenida. Tomou umas, que ninguém é de ferro. Cobertor de pobre, dizem. Ela desce a rua devagar, para não desequilibrar ou escorregar na calçada molhada. Nas mãos o saco mágico. Vai sem pressa, a cama quente e seca a aguarda. Ela observa com gosto as luzes refletindo nas poças d'águas.
Atravessa a rua, xinga o motorista que jogou água nos seus pés, covarde não parou para levar uma sacada na cara. De lá já vê seu ponto. Repara que seus vasos pegam chuva, fará bem para as plantinhas. Não sabe se um dia terá flores, não entende de plantas. Sorri, já tem flores no sofá. Caminha com a cabeça na infância, no interior, recorda-se da casa florida de sua vó.
Pára no ponto. O saco cai da sua mão. Estarrecida, constata que levaram seu sofá. Só a parede cinza do terreno lindeiro, as duas pilastras cada qual com seu vaso, a calçada molhada e as telhas por cima. Boquiaberta, não sabe o que faz. Esfrega os olhos com a mão livre, mas a cena não muda. Um passageiro desce do ônibus e esbarra nela, retirando-a do seu torpor.
Ela encosta-se à parede, está pasma: justo hoje seu sofá desaparece! Depois de um tempo infinito olhando os carros na avenida, ela reage. Abre o saco e retira uma garrafa plástica redonda. Hoje vai precisar. Dá uma talagada, estremece toda, e não é de frio. Forra o chão com os sacos pretos. O carpete por cima. Encosta o saco com seus bens entre a pilastra e a parede. Enrola-se no cobertor e fica observando a chuva cair. Como era bom com seu sofá! Agora tem medo de ficar ali, medo que coloquem fogo nela, como já ouviu dizer por aí. Esvazia a garrafa, relaxa e dorme.
De manhã, o sol a encontra acocorada, ainda envolta no cobertor, sobre um carpete encharcado, cabelos amarfanhados, olhar perdido, mas sem enxergar a chuva, a mente solta, pensando no filho da puta que roubou seu sofá!
José Frid
(fato real romanceado - ela continua lá toda noite, esperando o sofá voltar)
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