quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

O músico popular erudito


O Viaduto do Chá possui uma calçada comum de um lado e outra larga qual um calçadão. Esta maior liga em linha reta as ruas Direita e Barão de Itapetininga, e está sempre cheia. A outra vai dar no Teatro Municipal, mas, como cultura não traz movimento, está quase sempre ociosa. Nela moureja um cego, único expiador das culpas dos passantes.

O calçadão fica lotado de pequenos comerciantes informais, que tentam seduzir os consumidores desgarrados das ruas de comércio: ofertam antenas, revistas de palavras cruzadas, meias, canetas, tênis importados, água e refrigerantes, pen drives, plantas aquáticas, sorvetes, bolsas, DVD's, etc., enfim tudo que possa atender às necessidades prementes da população circulante.

Como não só de bens materiais vive o homem ou a mulher, seres iluminados também procuram atender aos anseios dos pedestres: ciganas, cartomantes, leitores de Tarô, jogadores de búzios, etc.: afinal somos espíritos carentes e curiosos.

Veículos passam nos dois sentidos do viaduto: ônibus, muitos ônibus, automóveis, motos, até caminhões. O barulho ensurdecedor do trânsito cotidiano e dos mercadores de rua é agravado, de tempos em tempos, por sirenes da polícia, dos bombeiros e das ambulâncias, além dos músicos populares eletrificados: indígenas bolivianos ou peruanos, quiçá paraguaios, duplas sertanejas, cantores evangélicos, sambistas, etc..

No meio dessa balbúrdia, bem no meio do viaduto, encostado à grossa grade metálica, de costas para a imensa bandeira do Brasil que tremula na praça, destaca-se o inaudível violinista.

Destaca-se? Como, se inaudível?

Sim. Ele e seu instrumento. Sua calma e seus movimentos musicais. Alheio a tudo, compenetrado em seu trabalho e missão.

Lá está ele, no meio do viaduto, sentado em sua cadeira simples. De um lado o negro estojo do violino e a bandeira da cidade; do outro um largo pedaço de lona amarela e a bandeira do estado. Chove em São Paulo por estes dias, como chove. Inclusive no Viaduto do Chá.

Rosto sério, antigo e cansado. Cabelos e bigodes fartos e brancos. Veste-se em tons de azul, como o Rei: boné azul piscina com discreta propaganda vermelha; camisa azul claro, talvez um guarda-pó do seu antigo emprego; calça social azul escuro. Tudo limpo e passado. Certamente existe uma senhora por trás do músico. Sapatos de amarrar, em camurça ou algo parecido, meias grossas de algodão. Pés inchados, os calcanhares estão expostos, amassando a parte traseira do cabedal.

A idade? Muita, mas indefinida. Ele está curvado e cansado.

Em frente a ele uma lata reluzindo ao sol, com um otimista palmo de altura, uns quatro dedos de largura. Contém um saco plástico azul claro como os de lixo, cuidadosamente ajustado à boca da lata. Dentro, algumas moedas de baixo valor. Ainda é cedo?

Céu azul, nem sinal da tempestade que virá às cinco. Sol escaldante para a alegria dos mercadores de líquidos gelados e picolés. Os vendedores de guarda-chuvas estão por ali perto aguardando a vez de atender à população. O refrão já está decorado: casarão é dez!!

O músico olha para frente, sem reparar em quem passa. Absorto. Olhar perdido ou observa as palmeiras do Vale do Anhangabaú, o Viaduto de Santa Efigênia, o Mirante do Vale? Com certeza não observa o cego da calçada oposta, que nestes dias de chuva se posta quase no fim do viaduto, a poucos passos da imensa marquise do prédio da Líbero: é difícil correr da chuva com olhos fechados.

O violino está na vertical, apoiado na perna esquerda. Na outra mão o arco pronto para entrar em ação. O relógio do Mappin bate as três horas: música, maestro! O músico entra em ação. Olhos fechados, violino apoiado no ombro, os dedos saltitam pelas cordas, o arco fere-as em vários ângulos e posições. O corpo todo vibra e oscila no ritmo da música.

Qual a música que executa? É conhecida, mas ninguém escuta. Seria necessário parar ao lado dele, desfrutar do som mavioso que vem do instrumento. Mas quem tem tempo? São Paulo, Viaduto do Chá, antes da chuva.

As pessoas passam apressadas desviando dos videntes, dos ambulantes e até dele, o músico. Mas o vêem de longe. Ele se destaca todo de azul como o Rei, Cabelos e bigodes fartos e brancos. Ele e seu instrumento. Sua calma e seus movimentos musicais. Percebem a dedicação e a grandeza do velho músico. Lembram-se de outros músicos, outros locais, momentos agradáveis marcados pela música ....

Não o escutam, mas as moedas vão, uma a uma, pouco a pouco, caindo sonoramente na lata. Ele, o músico inaudível, não as escuta, ouvidos tomados pelos sons agudos do instrumento; nem tampouco as vê, olhos fechados pela magia da música que o transporta para outroras salas de espetáculos.

O Municipal ali em frente?

José FRID

3 comentários:

Anônimo disse...

Não quero copiar ninguém, mas

"amo muito tudo isso"

E.

Anônimo disse...

Olá meu caro.
´
Não é uma cena tão incomum, esta descrita por vc. Se frequenta as imediações do
Conjunto Nacional já deve ter encontrado com um moço violinista, que, uma das
últimas vezes q o vi, estava acompanhado por um guitarrista, q até q era bom,
mas muito espalhafatoso e um tanto impaciente, para combinar com ele, tanto q,
de uma outra vez q, rapidamente por lá passava, lá estava ele, em frente ao Bco
do Brasil, mas sozinho.
Já parei e pedi música, e, claro, deixei além de moedas para ele. As moedas
foram deixadas qdo não fiquei escutando, somente no momento q parei.

É. Infelizmente, os brasileiros, em sua sua imensa maioria não sabem apreciar.

Boa noite, acoplada daquele abraço.

Z.

Metamorfose Ambulante disse...

Mas há uma diferença: o seu é audível!!!

Um dia desses vou lá ver o seu violinista.

FRID