quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Ano Novo Carioca (antes da tomada do Complexo do Alemão)



- Comigo dentro, não!


Um pouco depois:


- Um feliz Ano Novo para vocês todos!


Os estampidos ainda ressoam pelo ônibus, nos cérebros. Ninguém responde.


- Ô gente boa, animação, vamos lá. Feliz Ano Novo!


A lembrança da arma na mochila faz com que os passageiros respondam em uníssono:


- Feliz Ano Novo para você também!


Ele sorri, satisfeito. Pede para o motorista parar o ônibus. Desce, coloca a mochila nos ombros, acena para os passageiros e some no meio do chuvisco, lá para os lados do Sambódromo. O motorista fica olhando o vulto diminuindo, diminuindo .. ...


- Tá louco, motorista? Puxa o carro que ele pode voltar pra acabar com nós!


- Não dá moleza pro azar!


O motorista sai do seu torpor. Passa a marcha, sai devagar e pergunta sem olhar para trás:


- Pra onde vamos?

- Pra delegacia, grita um. Os que pularam podem voltar também!

- Não é melhor ir para um hospital, pergunta outro, informando que o Souza Aguiar está ali perto.

- Tão mortos. Melhor a delegacia, diz aquele que foi ao fundo do ônibus verificar o estado dos dois que ficaram.

- Motorista, sai daqui!!, grita um desesperado.


Minutos atrás:


- Comigo dentro, não!


Pipocam os estampidos. Tantos que não dá para contar. Dois rapazes pulam do ônibus em movimento pelo vão da janela quebrada.


Enfim o silêncio. Ele observa, ainda com a arma na mão. Parece um xerife do Velho Oeste. Um caído no chão, outro sentado, ambos imóveis. Os passageiros, petrificados. O zumbido morno do ônibus em marcha lenta. Ele olha ao derredor. Nada. Lá fora só a chuvinha chata que vem caindo desde o outro ano. Guarda a arma na mochila e se dirige à frente do ônibus dizendo "um feliz Ano Novo para vocês todos!"


Mais minutos atrás:


"Crack, clink." 


Os ruídos da quebra do grande vidro traseiro do ônibus assustam os poucos passageiros que restaram. Ninguém olha para trás. Medo? Talvez, mas também indiferença, costume, hábito. Não querem se envolver com traficantes, bêbados, drogados. O vidro é do ônibus, que cuidem dele o trocador e o motorista.


"Crash", cai um vidro lateral. O cobrador tenta esboçar uma reação, mas desiste à visão das armas ..... 


"Vamo trocar tiros", grita o quarteto ensandecido. O cobrador se encolhe no banco, quer sumir atrás da caixa de dinheiro. Os passageiros agora se agitam, preocupados, disfarçam, olham para trás, procuram ver se a confusão vai sobrar para eles. Os quatros percebem que dominaram o ônibus. Um grita que quem olhar para trás vai levar bala, outro berra para o motorista parar o ônibus, o terceiro joga uma lata de cerveja no corredor. O quarto sorri sentado, entorpecido.


Os passageiros obedecem, o motorista não. O que jogou a lata grita "vamo botar fogo!". "Fogo", repete o entorpecido. "Vamo queimar tudo", gritam os outros dois. "Fogo, fogo!"


- Comigo dentro, não!


Algumas horas antes:


"Feliz Ano Novo", "feliz Ano Novo", "feliz Ano Novo", "feliz Ano Novo", "feliz Ano Novo", "feliz Ano Novo", "feliz Ano Novo", "feliz Ano Novo", "feliz Ano Novo", "feliz Ano Novo", "feliz Ano Novo", "feliz Ano Novo", "feliz Ano Novo", "feliz Ano Novo".


Espoucam rolhas de sidras e espumantes baratos. Parece tiroteio no salão. Agora é tiroteio, lá fora. O pessoal do movimento está nas lajes comemorando 2007. Depois fogos, fogos barulhentos, muitos fogos coloridos. Os quatro amigos se abraçam, juram amizade eterna, se prometem um belíssimo ano novo, com muita mulher, dinheiro, cerveja .......


5:30, manhã de um dia chuvoso:


O ônibus da linha 355 - Cordovil-Tiradentes sai do ponto final em direção ao centro da cidade. Tirando o motorista, o cobrador e outro homem que acaba de largar do trabalho, todos estão alegres, alterados pela bebida e outras coisas mais, falando alto, agitados. Quase um carnaval. O motorista vai sem pressa, parando a cada ponto, recolhendo mais foliões e alguns que vão pegar no serviço. 


Na favela a festa continua animada. Um dos amigos diz que vai embora, tem que trabalhar mais tarde. Os outros três falam "vamo junto", "perigoso sair sozinho", "somo quatro irmãos". Beijos, abraços, latinhas para viagem, "vamo nós", "um por todos, todos por um". Os quatro conseguem chegar na calçada sem rolarem pelas escadarias. "Temo corpo fechado", "O cara lá em cima gosta de nós", dizem animados com a façanha. Caminham pela avenida cantando, dançando, bebendo e cheirando. O ônibus aproxima-se. Fazem sinal para ele parar. Entram gritando "feliz ano novo" e sentam-se no último banco. Dividem a cerveja quente. Batucam na carroceria e nos vidros do ônibus puxando um samba antigo.



- Vamo arrepiar por aí!

- Somos os Três Mosqueteiros!

- Samo os quatro cavaleiros do Apocalipse .....



6:20, primeiro de janeiro de 2007, centro do Rio de Janeiro:


- Comigo dentro, não!"




José Frid


(baseado em fato verídico)
(Veja a versão original de janeiro de 2008 clicando aqui)

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