sábado, 22 de janeiro de 2011

O gatinho da sorte ou O Duque do ano

Trinta e um de dezembro, Baixada Fluminense, Estado do Rio de Janeiro. A UPA funciona vinte e quatro horas. A equipe médica vai virar o ano no trabalho, afinal alguém tem que cuidar dos bêbados, da pressão alta, das crianças catarrentas, daqueles que exageraram nas comidas e o "epocler" não resolveu, dos solitários e dos hipocondríacos em geral.

Entretanto, comemorar o réveillon é fundamental. E nem precisa trocar a roupa, porque de branco todos já estão. Os médicos organizaram uma pequena e discreta festinha nas salas internas do posto. Salgadinhos e frios no lugar de peru, lombos, farofas, bacalhau, etc. Para compensar, só champanha da boa, afinal sidra e espuma de prata dão azar, qual cruzar com gato preto.

Pouco antes da meia-noite, a doutora loura, CRM estalando de novo, sai do prédio a fim de ir ao carro pegar os últimos enfeites da festa. A lua minguante ilumina parcamente o estacionamento. Ela está feliz: o plantão é cansativo, mas o carimbo novo está sendo bem usado, o juramento de Hipócrates sendo cumprido. Foi para isso que estudou longos seis anos. Digamos, três anos de estudo firme. Participou de todas as festas. da facul, o que conta tempo de estudo também. As reuniões nos barzinhos também são atividades acadêmicas, afinal entre chopes e fritas tem sempre alguém discutindo a situação de um paciente novo. Enfim, uns quatro anos e meio de estudo puxado para ela está ali, estetoscópio no pescoço, CRM no bolso, plantão de vinte e quatro horas bem remunerado. E seu gatão está ali com ela, que mais poderia querer?

Próximo ao veículo é surpreendida por um vulto que passa ligeiro, algo escuro, cinza, sujo. Ela congela de horror: um rato! O terror é tanto que nem o grito sai da sua garganta. O nefasto animal para mais adiante e mia algumas vezes e segue seu destino. Um gato!. Apenas um gatinho faminto. Ela respira aliviada, pega a caixa com os enfeites e retorna ao prédio.

Quem está à sua espera na entrada do posto? O duvidoso animal. Ele olha para ela, seus olhos verdes brilham. Ele mia. A doutora entende: fome! Acaricia o bichano, pelo ralo e sedoso de filhote. A cor dele é aquela mesma ou é a lua pálida? Dilema: não pode entrar com ele nem deixá-lo ali. Tira os enfeites da caixa e coloca-o dentro dela. Deixa a caixa um pouco longe da porta, oculta atrás de um pilar.

Entra, entregue os enfeites e pergunta se ali tem leite. Leite? Meia-noite? Réveillon? O pessoal ri, tem alguém trabalhando alcoolizada! Só se for leite de onça. Ignora-os. Pega água, biscoitinhos, um salgadinho, um queijinho e sai.

- Onde você vai, pergunta seu médico particular. Já é quase meia-noite!
- Volto logo, depois explico.

Ela retira-o da caixa, serve a frugal ceia, faz-lhe um rápido afago e volta correndo para festejar o ano novo com a equipe médica e um ou outro solitário paciente.

Fogos, beijos, brindes, beijos, isso são tiros ou fogos, não importa, importa sim, daqui a pouco podem estar aqui sangrando, é festa, deixa disso, são fogos, agora são as rolhas saltando dos gargalos, brindes, beijos, afagos, chegou o primeiro paciente do ano, quem vai atender, eu não, eu não, ela, a mais nova. Foi.

Sete horas, dia claro, missão cumprida, todos os pacientes medicados e encaminhados, os médicos insones começam a sair da UPA para o merecido descanso até a hora do lauto almoço de ano novo na casa da mãe, da sogra, da cunhada, da tia, dos avós, dos amigos, do clube, da minha casa que sou só.

O casal médico entra no carro. Ele escuta um miado fraco.

- Você colocou o gato no porta-malas?
- Que gato?
- Não está escutando o miado?
- Não.
- Presta atenção.
- É, estou ouvindo. Mas não vi o bicho depois da comida. Deve ter entrado sozinho.
- Como, num carro fechado?

O doutor verifica que o porta-malas está vazio. Ela olha debaixo do carro e nada também. Concluem que o bichano deve ter se assustado com eles e fugido. Ele dá a partida e ouvem miados novamente.

- Você botou aquele bicho nojento aqui dentro?
- Não, já disse. E não é nojento, é um gatinho muito fofinho. É um Duque!
- Que duque?
- O gato! Seu nome.
- Já tem nome?
- Não estamos em Duque de Caxias? Logo Duque, tipo "A Dama e o Vagabundo".
- Eram cães comendo macarrão.
- Aqui é gato comendo salgadinho.

Ele desliga o veículo e procuram novamente dentro e fora do caro. Nada de animal nem de miados. Mistério. Vai ver estão escutando sons que não existem, culpa das vinte e quatro horas trabalhando. Voltam para o carro, ele liga o motor e sai rápido. Alguns metros depois escutam miados fortes. Ele freia. Ela grita:

- Você atropelou o Duque!
- Ainda está miando. Tá vivo.

Eles descem depressa, talvez ainda possam salvá-lo. Entretanto, nada há sob as rodas do automóvel. Os miados recomeçam. Ele apura o ouvido, descobre a origem. Levanta o capô do carro e lá está o bichano em cima da bateria. Um minúsculo gato olha para eles. Cinza chumbo.

- Duque!
- Como ele conseguiu entrar aí?
- Esse gato é meu!
- Isso é bicho de rua, cheio de doença!
- Não, é meu. Encontrei antes da meia-noite, dei comida e soltei. Você não está vendo que ele arriscou sua vida para a gente encontrá-lo? Quer ficar comigo!
- Queria saber como ele achou nosso caro no meio de tantos. Que coincidência!
- Coincidência não existe. Isso é destino, sina. É sinal de sorte!
- Pelo menos não é preto.

A sorte que o gato trouxe para ela ainda não deu para constatar, nesses parcos dias de 2011, mas Duque já arranjou casa, veterinário, vacinas, coleira prateada com guizos, comida de graça e todo o amor do mundo.




Gostou do gatinho? Clique aqui e leia a estória das minhas duas cachorrinhas, que agora é uma apenas.


Aqui você pode ler sobre meus bichos de estimação.




2 comentários:

Metamorfose Ambulante disse...

Caro amigo!
Os animais ganham muito mais que uma criança pedindo um pedaço de pão, depois vem uns malucos dizendo que os seres humanos são isso e aquilo, que nada somos muito egoistas, etc..........
Mas ainda temos tempo para aprender as lições e renovar o Planeta.
Um animal pode unir duas pessoas ou não, ha,ha,ha.
Aquele abraço.
M.

Anônimo disse...

estou quase adivinando - o nome dessa doutora é MARIANA