Ela trabalhava na esquina da Rua Senador Feijó com a Praça da Sé, em frente a uma farmácia e à lateral do templo católico. Poderia fazê-lo de forma mais confortável, sentada e não em pé, num bar fuleiro logo após a farmácia, mas acho que ela queria ser independente ou, talvez, discreta.
Sim, discreta, apesar de tudo. Ela ficava ali parada, normalmente rente à parede, quase como uma estátua, sem mexer com os homens que passavam, quieta. Talvez ela se garantisse e achasse que nem precisaria chamar clientela. Assim, ela permanecia firme qual um ponto de referência. A farmácia, por questões comerciais ou, quem sabe, pela presença dela, mudava de nome e dono toda hora: a moça atraia ou afastava clientes? Mulheres certamente, todas à procura de tinta na cor dos cabelos daquele manequim vivo escandinavo.
Nessa esquina a prefeitura cansou de colocar e tirar correntes, placas, grades, pontaletes, tudo para forçar os pedestres a atravessarem mais para dentro da rua Senador Feijó, evitando a esquina, onde longos ônibus têm que fazer a curva bem aberto, ocupando todas as faixas da rua. Mas os pedestres insistiam em atravessar bem ali, passando por cima das correntes, contornando as grades, ignorando as placas, fugindo dos ônibus – seria a atração magnética dela?
Lembrei-me dela outro dia quando reli a crônica "Cafetão incidental" (clique aqui para ler). Nos últimos tempos não mais a tenho visto na citada esquina. Trocou de horário? Aposentou? Trocou de ponto? Casou e mudou? A prefeitura desistiu: nem grades, correntes, placas, pontaletes. Os pedestres fazem a festa, atravessando bem na frente dos ônibus, obrigados a dar aquelas freadas que chacoalham os passageiros.
As ruas e praças do centro velho estão cheias de moças trabalhadoras, normalmente em grupos, oferecendo seus serviços de forma agressiva, seja nos trajes de trabalho, seja fazendo ofertas irrecusáveis aos possíveis clientes. (Narrei aqui sobre as moças do Largo do Paissandu e de como foi difícil escapar delas).
Ela não. Comparando com as outras profissionais, seus trajes eram discretos, normalmente uma calça comprida de malha, para marcar suas curvas, bustiê no alto verão, camiseta em tempos mais amenos e casaco quando bate o frio paulistano. Ela apostava mesmo é na sua altura, na pele muito clara, um branco quase doentio, e nos seus longos cabelos lisos tingidos (acho eu) de um louro quase branco. Em resumo, uma nórdica na Praça da Sé. Uma sueca, quem sabe?
A fama das nórdicas como grandes amantes, louras bem fornidas. Quem nunca sonhou com uma sueca, uma dinamarquesa, uma finlandesa numa sauna úmida? Acho que essa fama era seu maior chamariz, um pedacinho do gelado norte europeu em pleno centro velho. Os gringos não vêm ao Brasil atrás de nossas mulatas? Nós vamos atrás de suas valquírias! E, quem não pode viajar, vai à Sé!
(Outro dia vi um documentário sobre as "polacas" que, numa determinada época, inundaram os bordéis brasileiros. Vinham do leste da Europa, muitas judias, fugidas das guerras, fomes e perseguições. Desbancaram as francesas como novidade. Esses brasileiros, sempre valorizando mais o que vem de fora ...)
Notei, ao longos desses anos todos, que ela engordou um pouco (eu também), o que, aparentemente, não atrapalhava seus negócios. Não era feia, nem bonita, talvez classificada como bonitinha. Nunca pude olhá-la muito bem porque ela poderia entender isso como interesse por seus serviços e eu perderia o distanciamento necessário às observações antropológicas.
Acho que ela começava cedo, já a tinha visto pela hora do almoço ou logo depois, e levava o expediente até as 19 pelo menos, última hora que já passei por aquele pedaço. Pedaço de rua, bem entendido. Nesses anos todos, só a vi uma vez negociando com cliente, mas como sobrevivia (e engordava), clientela existia!
Como disse, fazia algum tempo que não a encontrava diante da farmácia. Teria se aposentado? Mudado para um ponto mais rentável? Labutaria agora com algumas colegas? Morreu? As vendas de água oxigenada e tintas tinham caído na farmácia? Não havia como saber. Procurá-la? Muito ocupado nas lides diárias.
Entretanto, outro dia, por mera coincidência, quando saía de uma loja de produtos naturais na Quintino Bocaiúva, a revi do outro lado da rua, sob uma marquise. Era ela mesma, a sueca da farmácia. Estava trabalhando sozinha, como de costume. O local estava pouco iluminado, mas pude notar que seus cabelos estavam mais curtos, menos lisos, e mais escuros, tipo mel. Ela pareceu-me um pouco mais forte – a idade vem para todo mundo – e seus trajes mantinham o padrão da drogaria de outrora. Digamos que agora ela mais parecia uma polaca do documentário do que uma escandinava sexo-liberal. Uma senhora com filhos?
Será que aquela mudança de ponto e cor de cabelo era jogada de marketing? Os homens já não valorizavam as suecas? Davam preferência ao material nacional? Eu não tinha como saber nem iria perguntar-lhe. Segui pela Senador Feijó para pegar o Metrô na Sé. Passavam por mim morenas louras, altas louras, louras baixas, brancas louras, novas louras, louras velhas, mulatas louras, louras japoneses, negras louras, magras louras, louras gordas, índias louras, louras coreanas, .... aí caiu a ficha, como falam os antigos da era pré-celular: num país de louras, uma sueca perdida na esquina não tem nenhum valor erótico-comercial!!!
José FRID
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