Uma primeira-dama no Viaduto do Chá

- ... que a Dona Dulce Figueiredo tem ....

Estaquei de pronto ao ouvir o nome da ex-primeira-dama ser gritado por uma das cartomantes do Viaduto do Chá, que andava na calçada de um lado para outro. Será que eu tinha escutado errado, confundido um nome com outro? Curioso, encostei-me ao guarda-corpos do viaduto bem ao lado da banquinha da vidente, fingindo que prestava atenção no helicóptero pousando no gabinete do prefeito.

Ela olhou para mim e acanhou-se. Sentou no seu banquinho e ficou de boca fechada por alguns instantes. Entretanto, a necessidade de expressar-se foi maior e quebrou a barreira da minha presença, impelindo-a ao seu auto-diálogo, isto é, a conversar consigo mesma (E uma das duas era surda, pois a outra só falava aos berros).

O Viaduto do Chá é um centro esotérico de prospecção do futuro, chegando a ter mais de dez profissionais atuando ao mesmo tempo (leia aqui). Os videntes, homens, mulheres e terceira via, expõem seus materiais científicos (cartas de tarô de vários tipos, búzios, moedas, pedras variadas, pirâmides, cruzes, colares, bolas metálicas, etc.) à avaliação abalizada dos clientes. Devem fazer um serviço de utilidade pública, pois são ignorados pelos guardas municipais e policiais militares, mesmo estando nas barbas do prefeito. (Será que ele convoca alguns deles para ajudar nas decisões municipais?)   Como o lugar é descampado, eles se abrigam sob guarda-chuva ou guarda-sol. A conhecida da primeira-dama portava uma sombrinha colorida e uma touca de tela branca, com moedas douradas na barra, arremedando uma cigana.

Enquanto dialogava com seus botões (ou com a Dulce Figueiredo), ela ia e vinha pela calçada, assustando os transeuntes e afastando possíveis clientes. Eu ali atento, tentando dar uma lógica aos fiapos de conversa que conseguia captar, mas nada da primeira-dama ser citada outra vez ou de descobrir o contexto da sua citação. Apesar da curiosidade, o inclemente sol primaveril da hora do almoço – era outubro passado – e o vazio existencial no estômago fizeram com que eu desistisse da pesquisa e seguisse meu rumo.

No almoço, distraído, comecei a recordar aqueles tempos da Dulce e do João Batista Figueiredo, nosso último ditador eleito, padrão cubano. Duas figuraças! Ela  uma famosa perua daquela época, sempre nas capas das revistas de "celebridades" da época – Manchete, Fatos e Fotos, O Cruzeiro – muito maquiada, roupas e jóias extravagantes. Uma espécie de Marisa Letícia Lula da Silva da ditadura, duas primeiras-damas peruas desfrutando das benesses do poder do marido. Entretanto, a Marisa teve mais sorte, hoje tem botox, preenchimentos em tudo que é lugar, silicones, lipos, peeling melhores, cremes maravilhosos, etc., dá para ser perua com mais facilidade. No tempo da Dulce, o negócio era mais bruto, a cirurgia plástica alisava a pele, mas fechava os olhos, como a Elza Soares.

Por onde andaria a dona Dulce? Desde que o Figueiredo deixara a presidência, nunca mais tinha ouvido falar dela, o que é bastante razoável, pois se primeira-dama em exercício já não significada nada, uma 'ex" vale zero! Lógico que a Cristina Kirchner e a Hillary Clinton estão aí para desmentir a regra. Curioso, saquei o smartfone e consultei o oráculo moderno: o Google informou que ela tinha morrido em junho, apenas quatro meses daquele dia! Será que a vidente era amiga da primeira-dama e recordava um fato ocorrido com as duas? Teria lido hoje um jornal atrasado e descoberto agora, como eu, que a dona Dulce tinha morrido? Algum contato esotérico ou espiritualista?

O Figueiredo falava tanta bobagem quanto o Lulla, não podia ver uma câmera de televisão. Lembrei da sua reação ao experimentar o leite de soja a ser distribuído aos estudantes num programa denominado "vaca mecânica" (que hoje seria denominado PAC do Leite, executado por ONGs de amigos e parentes, que desviariam mais da metade da grana investida): fez a maior careta e disse que o leite era horrível. A vaca foi pro brejo na hora! Noutra ocasião, "prenderia e arrebentaria" quem fosse contra a abertura política, algo "muito" democrático. Disse que preferia o cheiro de cavalo ao do povo, posição coerente para um presidente de regime ditatorial. Quando foi operado do coração em Houston (naquele tempo os presidentes não iam para o Sírio Libanês), disse que se sentia como um porco estripado. Porém, teve uma atitude digna e louvável: não passou o governo para o Sarney. Uma pouca vergonha: Sarney passou em poucos meses de presidente da Arena-PDS, partido da ditadura, para vice na chapa presidencial de oposição! Haja coerência política!! Sempre agarrado às tetas gordas do poder!

Volto do almoço, encontro a vidente na mesma faina, berrando de um lado para outro da calçada. Olho no relógio e dou um tempo ao lado dela. Dessa vez ela não se intimidou, continuando com seu auto-diálogo pela calçada do viaduto. Percebe que presto atenção nas suas palavras e, por fim, pergunta-me se quero ler as cartas. Surpreso, respondo que quero saber da Dulce Figueiredo. Agora ela é que fica surpresa com meu pedido. Senta-se no seu banquinho e acena para aproximar-me dela. Fico intimidado. E se um conhecido passar por ali? Como explicar que não estou consultando o futuro, mas fazendo uma prospecção histórica?

Um homem de terno aproxima-se do grupo de adivinhos e grita batendo na bíblia:

 - Entregue tua alma enquanto é tempo!

A minha cartomante, sacudindo as moedas da toquinha branca, grita desaforos para o crente, que os ignora e continua a pregar aos berros:

- A adivinhação do futuro é coisa do demo! Ajoelhem-se e deixem suas vidas nas mãos de Deus, nosso guia! Arrependam-se enquanto é tempo!!

Aproveito a guerra santa e saio de fininho, mas ainda encafifado com a presença da primeira-dama no Viaduto do Chá. Quem sabe uma sessão espírita ....

José FRID

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