quarta-feira, 6 de abril de 2011

Paixão Metroviária


Hora do almoço. Metropolitano de São Paulo. Estou no primeiro vagão, como de costume, recostado na cabine do motorneiro, lendo "Necrose da Palavra". O trem para na estação São Joaquim. O vagão é invadido por estudantes e suas mochilas. Lota. Um casal jovem, estudantes, acomodam-se ao meu lado. Ele está quase totalmente de costas para mim, vejo apenas a parte de trás da sua cabeça, sua orelha direita e a haste da armação dos óculos. Ela, por sua vez, está quase totalmente de frente para mim. Ambos com mochilas, tênis, jeans, camisetas e jaquetas, mas não estão de uniforme, a roupa dela reflete sua condição feminina. Ele é um pouco mais alto do que eu, ela bate no ombro dele. Conversam entre si. Ela segura no balaústre lateral, ele no superior.


Depois desse reconhecimento do entorno, volto ao meu livro. O trem parte. Um beijo estala. Procuro, é o casal. Ela na ponta do pé, ele abaixando ligeiramente a cabeça. Conversam, leio, estala outro beijo. Conversam, leio, beijo. Quem consegue ler assim? Conto: quatro, cinco, seis, sete,...., são dezesseis até o trem parar na estação Liberdade, percurso feito em dois, três minutos.


É claro que a conversa entre eles, com tantas interrupções carinhosas, não evoluiu. Pelo que pude captar, nada importante mesmo, alguma reclamação sobre professores, provas, coisas assim. Como não vejo o rosto do rapaz, não sei se é ele que solicita o beijo ou se é ela que lhe dá por vontade própria, encantada com seu príncipe consorte. Ou se é caso de uma paixão recíproca. Não consigo saber, também, se ele está gostando. Ela, eu vejo, que fica radiosa a cada beijo dado. (Senti uma vontade imensa de trocar beijo por ósculo para não repetir palavras, como minha professorinha ensinou lá nos longínquos tempos do colégio, mas ósculo é uma palavrinha muito feia. Quem ficaria radiante ao receber um ósculo? O dicionário sugere "chupão" com sinônimo de beijo, mas está claro que o casal não trocava "chupões" em público.)


O trem fica pouco tempo parado na estação, mas o suficiente para sete beijos surgirem. Poucas pessoas entraram ou saíram do vagão, de forma que o arranjo físico de nós três não é alterado. O trem parte, recomeço a contagem, mas agora os beijos não surgem, mas jorram desenfreadamente. Perco o número exato. Fico com pena da moça, que tem que se erguer na ponta dos pés a cada beijo. Por que será que o rapaz não reclina para beijá-la ou abraçá-la? Torcicolo? Soberba? Timidez? Imagino que esse frenesi beijoqueiro seja decorrente de uma futura separação do casal na próxima estação, a Sé.


O trem para. Quase todos desembarcam, inclusive nós três. O casal caminha lentamente pela plataforma, de mãos dadas. É chegada a hora da separação? Um irá para a Barra Funda, outro para Itaquera ou a própria Sé? Chegam ao átrio central da estação, sob a cúpula de vidro, banhada pelo sol, onde estão as escadas rolantes, uma de frente para outra, de acesso à saída e à outra linha do Metrô. Ao pé da escada rolante de acesso à Barra Funda, eles se abraçam e um último beijo é dado. Os dedos dele escorrem pelas dela, ele segue em frente pela plataforma, em busca da escada com destino a Itaquera. Ela espera. Ele olha para trás, lança-lhe com a mão um último beijo e deixa-se levar pela escada rolante. Ela retribui e alça-se pela sua escada. Os dois se elevam da plataforma, cada qual em seu rumo, como dois querubins ascendendo às nuvens celestiais. Até amanhã, meu bem, na aula. O amor é lindo, não?


José FRID, atento observador do Metropolitano.

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10 comentários:

Anônimo disse...

muito bom

M.D.

Anônimo disse...

Bom dia Frid,
Adorei sua história, mas tenho algumas observações a fazer sobre a minha querida Companhia do Metrô:
1º) A Companhia é popularmente chamada de "METRÔ" e não de Metropolitano de São Paulo;
2º) Chamamos de "primeiro carro" e não de vagão;
3º) A cabine é do "operador" e não do motorneiro (que eu me lembre chamávamos de motorneiro os condutores dos bondes da Ligth), antigo não? rsrsrsrsrs, Gostou da minha intervenção no seu texto?

P.

Metamorfose Ambulante disse...

Sua intervenção é sempre ótima!!

Quanto às observações:

1) Eu também uso Metrô (veja outros textos meus), mas achei mais charmoso e pomposo usar "Metropolitano de São Paulo". Note que a expressão está entre dois pontos. "Metrô" ia ficar muito curtinho.

2) Essa do "carro" eu não sabia. Vivendo e aprendendo! Mas se soubesse, acho que continuaria escolhendo "vagão", por questões literárias. Talvez eu use "carro" num próximo texto mais moderninho.

3) "Operador" eu conheço (agora está cheio de "operadoras"), mas "motorneiro" dá um ar "vintage", não? Terno e gravata, chapéu, luvas, bigodinho .... sugestão para a vestimenta dos operadores!

Grande abraço

José FRID

Anônimo disse...

Morri de inveja da menina, pois não consigo dar nem um "beijo" em quem eu gostaria muito.

Beijos, H.

Anônimo disse...

excelente, agradeço o envio.

abração,

e.

Anônimo disse...

É Frid, o amor é lindo! E na idade deles é melhor ainda.
Um abraço,
V.

Metamorfose Ambulante disse...

Na idade deles só?? Quer dizer que você não dá 16 beijos no seu marido entre uma estação e outra do Metrô??????

Frid

Anônimo disse...

Mais uma vez ótimo!
A.

Anônimo disse...

Frid,

Adoro tuas crônicas!!!

Continue me mandando tá.

Bjs

A.

Metamorfose Ambulante disse...

Fico contente que você tenha gostado. Continuarei mandando!!



Cuidado que hoje vou ao Salve Jorge!

FRID